Esta plaquete nasceu de uma escuta que se parece com a de um rio.

A voz de Clara Nunes não me arrebatou como uma tempestade; ela me envolveu como uma correnteza mansa, mas impossível de deter. Senti que sua trajetória era a própria geografia de um povo sendo desenhada em som. A escrita foi uma tentativa de mergulhar nessas águas, de seguir o curso desde a nascente até o mar aberto, para entender como uma voz pode carregar a alma de um Brasil inteiro.

A obsessão que move esta plaquete é a voz como lugar de sagração do Brasil mestiço. Eu queria mostrar como Clara não apenas cantou, mas oficiou um rito de pertencimento. Ela pegou os fios partidos da nossa história — o indígena, o africano, o popular — e os teceu em um manto sonoro . A obra é uma celebração dessa tecelã, dessa guerreira que, com doçura e firmeza, nos fez olhar para o espelho e, pela primeira vez, nos acharmos bonitos em nossa mistura.

A arquitetura da plaquete, com as cartas e os poemas-ecos, foi pensada para fluir como um rio. A carta em prosa é a margem, a minha tentativa de descrever o percurso, de contextualizar cada álbum como uma curva nesse leito. O poema curto é a própria água, a sensação pura, a reza que a correnteza sussurra. É a união entre a cartografia e o mergulho.

Se há um ponto em que o rio se torna mar, é na carta sobre "Canto das Três Raças". Ali, a missão de Clara se torna explícita. Sua voz deixa de ser apenas uma voz para se tornar o leito onde os "três sangues" da nossa história correm juntos . Aquele hino é a síntese de toda a plaquete: a ferida aberta que se transforma em abraço, o registro vivo de quem somos. É o momento em que o Brasil se reconhece inteiro no espelho dela.

A voz que fala aqui é a de quem se senta na beira do rio para escutar. É uma voz que se deixa levar pela correnteza, que se banha nessa claridade. Não há a intenção de analisar friamente, mas de reverenciar. É a minha voz em estado de devoção à força serena da guerreira, à sacerdotisa que me ensinou que o samba pode ser altar e que a resistência pode ter a doçura da água.

Minha esperança, com esta plaquete, é que ela funcione como uma fonte. Um lugar onde o leitor possa beber um pouco dessa água limpa que é a voz de Clara. Queria que os textos servissem como um convite para se reconectar com esse Brasil profundo, de fé e de festa, que ela tão lindamente representou. Que seja um lembrete de que, apesar de tudo, a nascente ainda corre.

Hoje, vejo Voz, Clara, resistência como a minha celebração da resiliência. A plaquete me ensinou sobre a força que não grita, mas que insiste, que flui e que, com o tempo, contorna qualquer obstáculo. Foi a minha forma de honrar a memória que não se apaga, a voz que se tornou elemento da natureza, a água que continua a nos benzer e a nos lembrar de quem somos.

Espero poder dividir esta experiência com você.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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