Remexendo na minha própria biblioteca, de repente me lembrei de como cheguei ao pensamento: “Idealizamos utopias, mas realizamos distopias” e “a realidade é distópica.” Passando os dedos pelas lombadas, toco não apenas livros, mas restos de sonhos desfeitos, promessas caídas em poças de espelhos quebrados.
Em O Tacão de Ferro, a busca pela igualdade era uma bandeira que foi levantada, apenas para que a massa fosse pisoteada por aqueles que sempre estiveram no poder. A marcha para a utopia do povo tornou-se agora uma marcha militar sobre corpos exaustos.
Em Nós, como Zamiátin sabia, a imagem do coletivo justo tornou-se âmbar, envidraçada. A vida tornou-se números, movimentos cronometrados, o olhar monitorado. O fôlego de todos escapou, a utopia da comunidade se desfez.
Em Admirável Mundo Novo, o progresso garantiu a liberdade. Mas a ciência veio, disfarçada de deusa, trazendo pílulas de felicidade e castas de laboratório. O futuro radiante tornou-se um anestésico comunal.
Em 1984, Orwell apresentou o lado oposto do sonho da revolução: o Estado transformado em olhos oniscientes, a linguagem neutralizada, a memória reescrita. A utopia do coletivo tornou-se um culto de mentiras.
Fahrenheit 451 acende em mim o fogo da perda: a liberdade da palavra, tão valorizada, reduzida a cinzas. O livro, em chamas de raiva, é um retrato de uma cultura apaixonada pela luminosidade do vazio, as telas diante de nossos rostos.
Em Laranja Mecânica, a ordem prometida se revela como uma prisão. Paz sem escolha não é paz; é mutilação. Esmagada, a vontade livre sangra ainda mais do que a violência.
Em Não Verás País Nenhum, Loyola nunca precisou sonhar com o amanhã. Não foi preciso muito para olhar ao redor: filas, censura, poluição, desigualdade. O país já era um lugar de ruína. A utopia de um Brasil mais justo desmoronou em pó sob a ditadura.
A pureza religiosa sonhada é distorcida em um claustro, em O Conto da Aia. Mulheres transformadas em ventres, corpos tomados como reféns por orações armadas. A fé, em vez de libertar, aprisionou. Sensação que se prolongou com a leitura de Os Testamentos, onde Atwood prova que mesmo as paredes mais altas têm brechas, e que mesmo sob tirania onipotente sempre há aberturas pelas quais sopram os ventos da resistência.
Ao folheá-los todos, percebi que toda distopia cresce a partir de alguma outra utopia — baseada na igualdade, ou coletividade, ou progresso, ou segurança, ou fé. Mas na encarnação, elas perdem a delicadeza do sonho e tornam-se peso e contenção e confinamento.
E então, diminuído por esses livros, espelhos distorcidos do humano, desenrolo a pergunta: que distopias estamos construindo então, devorando nossas utopias?