Permitam-me esboçar um pensamento, uma crônica.
O corpo nunca é só um corpo. Sinto-o como um palco milenar, um campo de batalha onde se tecem os fios do poder e da cultura. Foucault me ensina a ver as inscrições em minha pele: a transição do suplício público à vigilância silenciosa, a disciplina que amansa e otimiza, forjando um corpo dócil, útil. Ortega me desvela a incerteza deste corpo atravessado por próteses, implantes e intervenções genéticas; um corpo que se faz performance e espetáculo, na busca incessante por uma juventude que não lhe pertence. E Le Breton me sussurra sobre a perda, sobre este corpo que se torna objeto de culto e obsessão, esquecido de sua própria e bela finitude.
E há este outro, o corpo inexistente, um fantasma de luz erguido nos vácuos da tela, um simulacro perfeito de nossa própria imagem. Coeckelbergh me alerta sobre os perigos de entregar a humanidade à máquina; Harari me adverte do Homo Deus que desejamos ser, buscando a imortalidade na simulação. A techné, como lembra Galimberti, nos molda a psique, e o corpo se torna um apêndice, um vetor de dados. E no eco das vozes de Heidegger, Jonas e Wittgenstein, percebo o perigo: a linguagem que vira jogo, o corpo que se dilui em emojis e likes, um espectro digital que vaga pelos labirintos da internet. No silêncio dos pixels, escuto um grito. Um chamado de volta à carne, ao toque, ao cheiro.
Mas eu o sinto. Para além da crítica, sinto meu corpo como poema. Um registro que se inscreve na pele, nas cicatrizes, nas rugas. Minha pele é a cartografia de vivências; dentro, rios de sangue tecem o fluxo da vida, e meu coração é o tambor primordial que dita o ritmo. Sou um templo ambulante, habitado por memórias que ecoam no tempo. Sou um documento existencial, um arquivo vivo de minha jornada. Um corpo que se reinventa, que é obra de arte em mutação, um poema que se escreve a cada respiração.
No silêncio entre a pele e a alma, convido os mestres. Winnicott me sussurra sobre o "berço do sentir", o holding materno onde o afeto nos torna vivos. Bion me mostra o corpo como campo de batalha, a alquimia que transforma as sensações brutas, os beta-elements, em palavras que curam. E Jung me aponta o portal, o corpo como a casa da sombra, a parte reprimida que anseia por integração para a realização do self. E nesse diálogo, sinto o corpo-afeto que dança, que pulsa, que se entrega ao encontro.
Somos feitos de histórias. O corpo é o palco e o personagem. Ele conta, com seus gestos, a narrativa que as palavras às vezes calam. Rita Charon me ensina a escutar o "corpo que conta" na fresta do cuidado. Walter Benjamin me lembra do narrador como um artesão da memória, enquanto Byung-Chul Han me alerta sobre a história que hoje se quebra em mil pedaços. É nas metáforas da doença, que Sontag desvelou, e nos diários de Audre Lorde, que vemos um corpo que se reinventa na dor. É preciso, então, um "corpo crítico", como o de Bernardet, que resista às narrativas dominantes, como insiste Chantal Jaquet, e que se imagine como um "corpo utópico", como o de Foucault, em constante devir.
E então percebo: meu corpo não termina em minha pele. Ele se estende. Primeiro, o corpo humano, mosaico de formas e vivências que clama pelo fim das hierarquias e preconceitos. Depois, o corpo vivo, a teia interconectada de seres da qual somos parte, e que a nossa ganância insiste em destruir. E, por fim, o corpo planetário, nosso gigante adormecido, nosso lar compartilhado, ameaçado por nossa própria arrogância. A imensidão dos corpos nos convida a tecer fios de cuidado, a reconhecer a interconexão de todas as coisas.
Cuidar, então, é este o verbo. É o ato final. É abraçar a totalidade do ser. Para a carne, escuto Le Breton, que nos ensina a habitar a pele com gentileza, e Daniel Lieberman, que nos convida ao movimento ancestral. Para o corpo no mundo, a crítica de Foucault, a ecologia de Boff e a ética do cuidado de Irène Brugère nos guiam por entre as engrenagens do poder e a teia da vida. Para a alma, a meditação de Anthony De Mello (o padre jesuíta), a sabedoria de Grun e o silêncio de Leloup abrem-nos as portas. Cuidar é tecer este manto de atenção, respeito e amor. É celebrar a sinfonia de corpos que dançam em um mundo em constante transformação.
É, aliás, o próprio ato poético: uma tese que cultivo.
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