Jarra de cerâmica branca ao lado de copo de água sobre mesa de madeira clara, em ambiente com iluminação natural suave


"Nenhum poema dá conta da poesia inteira, mas cada poema oferece ao menos uma fresta, um vislumbre, um pedaço de luz que se deixa tocar." — Giovani Miguez


Poesia não é um objeto que se pega com as mãos, nem tampouco uma ideia que se encerra em conceitos. Poesia é o invisível que atravessa a experiência, aquilo que se anuncia no instante em que o olhar se demora e descobre beleza onde ninguém esperava. É vento que passa e não se deixa segurar, é clarão que ilumina de repente, é vertigem que nos retira do chão para lembrar que a vida é mais do que calendário, rotina e utilidade.

Poesia é conteúdo: essência, magma, rumor que não se acomoda em lugar algum.

O poema, em contrapartida, é a tentativa de dar-lhe contorno. É o gesto de moldar o vaso, a construção da casa, a lâmpada que tenta guardar a chama sem sufocá-la. Não é oposição, mas necessidade. Sem poema, a poesia se dispersa como água derramada; sem poesia, o poema se torna apenas casca, ossatura vazia, artesanato sem vida.

Poema é continente: forma, limite, corpo que se arrisca a conter o indizível.

Entre um e outro, o poeta vive em travessia. Não inventa a poesia — apenas a encontra. Recolhe-a no silêncio de um quarto, no som de uma rua, no gesto miúdo de uma criança, na cicatriz aberta de uma memória. Depois, tenta depositá-la no poema, como quem guarda perfume em vidro, sabendo que parte sempre se perderá no ar. Escrever é aceitar essa perda. Nenhum poema dá conta da poesia inteira, mas cada poema oferece ao menos uma fresta, um vislumbre, um pedaço de luz que se deixa tocar.

Cada poema é um continente precário, mas necessário, um abrigo provisório onde a poesia encontra um pouco de corpo. É pele porosa, jarra imperfeita, borda frágil que ao mesmo tempo guarda e deixa escapar. E quando esse equilíbrio acontece, quando a forma não sufoca a chama mas a deixa respirar, já não distinguimos jarra e água, corpo e alma, palavra e silêncio. Apenas bebemos. E, nesse gesto simples, somos também atravessados.

Talvez por isso a escrita nunca se encerre.

Escrever, então, não é domar a poesia, mas abrir espaço para que ela habite. É construir um continente que não se feche em si, mas que ofereça passagem. O poema é esse corpo: nunca absoluto, sempre insuficiente. Mas é nele que a poesia encontra chance de existir entre nós. E é nele que aprendemos a beber do indizível, como quem aprende que há verdades que não se dizem — apenas se vivem.

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SÍNTESE POÉTICA

1. O que escapa

poesia não se deixa capturar.

não é objeto, não é conceito, não é cálculo.

é rumor no vento,

clarão que rasga a manhã,

vertigem que desestabiliza a rotina.

poesia é conteúdo — sempre excesso, sempre além.

2. A casa do indizível

o poema é a tentativa de dar contorno a esse excesso.

é vaso moldado, casa erguida,

pele de palavra que se oferece como abrigo.

poema é continente: corpo e limite.

não nega a poesia, mas a guarda.

sem poema, a poesia se dispersa;

sem poesia, o poema é casca vazia.

3. O gesto do poeta

o poeta não cria a poesia, apenas a recolhe.

ela já está no mundo — no riso de uma criança,

no silêncio de uma ausência,

no ruído de uma rua.

o gesto é conduzi-la até o poema,

como quem tenta guardar perfume em vidro,

sabendo que parte sempre se perderá no ar.

4. A travessia

escrever é aceitar essa perda.

nenhum poema consegue conter o infinito da poesia,

mas cada um abre uma fresta.

é nesse vão que a vida respira.

é nesse intervalo que a poesia se deixa tocar.

5. O pacto

Poema é corpo frágil, jarra imperfeita,

´mas é nele que a poesia encontra chance de habitar.

quando o continente não sufoca a chama,

quando a forma deixa a alma respirar,

não distinguimos mais jarra e água,

corpo e alma, palavra e silêncio.

apenas bebemos.

e nesse gesto simples,

somos também atravessados.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta, escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em Gestão Pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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