Mãos escrevendo poema manuscrito em caderno com caneta sobre mesa de madeira


Escuto a poesia feita no Brasil e o que sinto é pulso.

Uma cadência que vem da terra, do corpo, do gesto miúdo do dia a dia. Uma coragem de mergulhar a mão na ferida e na festa do seu povo. Falar desse percurso é olhar para dentro de uma casa imensa, com cômodos individuais e pátios coletivos. É a minha própria travessia, a mesma que proponho no Ateliê Po(ético: uma busca pela palavra que cuida, que documenta, que nos alarga por dentro.

Desde os primeiros versos românticos, passando pelo terremoto modernista, pelos sussurros da resistência e pela polifonia de agora, a poesia no Brasil é paisagem viva. É um rio em constante movimento, que ora se aquieta, ora transborda. Cada poema é um registro, um sonho, um arranhão na pele do tempo. E serve, no fim, para nos lembrar do que é ser humano.

Antes que o Brasil se soubesse Brasil, a poesia já era mestiça. Os primeiros versos eram um espanto diante da mata, uma tentativa de dar nome à luz nova, ao encontro de corpos e crenças. A voz de Gregório de Matos, no século XVII, já anunciava o que viria: uma boca que reza e morde, que mistura o sacro e o sarcasmo.

Com a independência, a busca por uma voz própria se adensa. O Romantismo não só descreve a paisagem tropical, ele a devora. A natureza invade o poema. O índio, o amor, a saudade e a nação se tornam a matéria-prima de um eu lírico que, mesmo quando fala de si, ecoa o coletivo. Gonçalves Dias nos ensina a sentir saudade da palmeira que nunca vimos. Álvares de Azevedo nos mostra a beleza que há na sombra. E Castro Alves ergue a voz, tornando o poema um navio que denuncia a escravidão, um corpo que se recusa a calar.

O tempo move, e o olhar do poeta transforma-se. O romantismo cede espaço a outras águas. O Realismo chega com o gosto de ferrugem da desilusão, a coragem de apontar a hipocrisia. O Parnasianismo, em sua busca pela perfeição, esculpe um verso de mármore, uma arte que se basta em sua própria beleza. E o Simbolismo, como um mergulho noturno, busca o mistério, o som das coisas, a música que há no inconsciente. Olavo Bilac é o artesão da forma; Cruz e Sousa, o "cisne negro", é a ferida aberta do simbolismo, a voz que canta a dor da exclusão com uma beleza abissal.

O verso se confirma como ferramenta: ora bisturi, ora amuleto, ora chave para uma porta que só a alma vê.

Então, 1922. A Semana de Arte Moderna não foi um evento, foi uma rachadura no tempo. A poesia se partiu para se reencontrar. O verso desceu do pedestal e foi para a rua, aprendeu a gíria, o humor, a ironia. A metrópole de Mário de Andrade, com sua beleza caótica, tornou-se personagem. A Pasárgada de Manuel Bandeira, um refúgio para todos nós. A música delicada de Cecília Meireles nos provou que a poesia pode ser travessia. E Oswald de Andrade nos deu a lição mais radical: devorar. Antropofagia. Comer a tradição para parir o novo.

A partir daí, não há mais tema proibido. A pedra no meio do caminho de Drummond é a nossa pedra. O amor urgente e finito de Vinicius é o nosso amor. Tudo se torna matéria poética.

Nos tempos de chumbo, a poesia se arma. A partir dos anos 1960, com a repressão política, o verso se torna refúgio e denúncia. Ferreira Gullar escreve seu Poema Sujo com as vísceras do exílio. Hilda Hilst dinamita as fronteiras entre o corpo e o sagrado. Paulo Leminski e Waly Salomão jogam com a cultura pop, com o fragmento, com a vida que pulsa fora dos livros.

A palavra se espalha por mimeógrafos, fanzines, saraus. A poesia marginal encontra sua força na urgência, na recusa, na voz da periferia. Ela se protege e ataca.

Hoje, a poesia brasileira é um delta. Um encontro de muitos rios que deságuam no mesmo mar. As vozes são múltiplas, radicais em sua diversidade. Falam de gênero, de raça, de território. A escrevivência de Conceição Evaristo nos ensina que a memória é um ato de luta. A oralidade de Sérgio Vaz nos mostra que a periferia é o centro. A experimentação de Marília Garcia nos lembra que o poema é um campo aberto.

O poema está no slam, no post, no corpo. É experiência coletiva, sensorial, política. Cada verso pode ser acolhimento, protesto, cura.

Se o poema é documento de um tempo, ele também é ferramenta de transformação íntima. A leitura mediada, a biblioterapia, o encontro em torno do poema confirma: a poesia é um espaço de cura. Ler um poema é acolher um pedaço do outro e, nesse gesto, encontrar um pedaço de si. É um caminho para elaborar dores, criar espaços de escuta e fortalecer o que nos torna humanos. O poema se torna, assim, um arquivo vivo de nossas travessias, um documento de quem fomos e uma semente do que podemos vir a ser.

A poesia feita no Brasil não é uma linha reta. É um corpo que pulsa, que erra, que se reinventa. Ela sobrevive porque se alimenta do próprio caos, porque nunca deixa de procurar a beleza, mesmo na poeira. O convite é este: mergulhe neste rio. Permita que a poesia ajude a cuidar do seu caminho.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta, escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em Gestão Pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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