Cineasta e documentarista brasileira. Dirigiu os premiados filmes Elena e Democracia em Vertigem, que foi indicado ao Oscar em 2020.

Há um cansaço que a gente sente e não sabe nomear. Um esgotamento cívico, uma vertigem que vem não do excesso de informação, mas da falta de nexo. Por anos, olhamos para a paisagem política do Brasil e vimos apenas o ruído, a fúria, o delírio. Parecia um acidente histórico, um surto coletivo. Um país tropical que de repente sonhava com invernos puritanos.

Então, escutei Petra Costa. E o que aprendi com ela não foi um antídoto, mas um mapa. Um mapa do labirinto.

Aprendi que o delírio pode ser um método. Que o Apocalipse não era uma profecia distante, mas um projeto de poder com nome, sobrenome e sotaque importado: Teologia do Domínio. A ideia, em sua assustadora simplicidade, é a de que o céu precisa descer à força, e que para isso é preciso conquistar o mundo. Não apenas as almas, mas o Congresso, as cortes, os conselhos escolares, a cadeira do presidente, a tela do seu celular.

Vi, nesse mapa, o desenho de Sete Montanhas que deveriam ser tomadas por um exército que se move por fé. E a jornada dessa ideia é, em si, uma epopeia do absurdo. Uma teologia fria, nascida do ressentimento branco e calvinista nas planícies dos Estados Unidos, sonhada por ideólogos que viam na segregação uma ordem divina. Essa mesma ideia, que ajudou a dar um trono a Reagan e depois a um rei de ouro chamado Trump, embarcou num avião, cruzou o Equador e aprendeu a falar português.

E aqui, em solo majoritariamente negro, ela realizou sua mais estranha alquimia. Despiu-se do capuz racial explícito e vestiu o manto da guerra moral. O inimigo não era mais o outro pela cor, mas pela conduta. Fantasmas foram criados em laboratório – o espectro do banheiro unissex, a mamadeira em forma de demônio – e soltos nas ruas, nos grupos de família, nos púlpitos. O aborto, me explicou Petra sem dizer, deixou de ser um debate sobre saúde e se tornou um mito de fundação, o sacrifício de sangue que justificava a cruzada.

Aprendi que a prosperidade, antes uma bênção a ser buscada, virou uma arma de conquista. E que um povo historicamente subjugado poderia ser seduzido pela promessa de dominar, mesmo que em nome de uma lógica que, em sua origem, o via como subalterno. A identidade do "irmão em Cristo" se tornou um passaporte que tentava apagar as cicatrizes da identidade da pele.

O ruído, então, ganhou uma partitura. O caos, uma arquitetura. O bolsonarismo não foi um acidente, foi o veículo que esperava na garagem por um motorista com um destino claro. O "Deus acima de todos" não era uma figura de retórica, era o general de uma guerra pela conquista das montanhas.

Não saí dessa conversa mais otimista. Saí, talvez, mais assustado. Porque entender a lógica da loucura não a torna menos louca. Apenas revela o abismo com uma clareza terrível. O cansaço que eu sentia ganhou um nome. E ele se parece menos com uma doença e mais com o sintoma de quem vive num terreno que está sendo, silenciosamente, terraformado sob seus pés.

@giovanimiguez


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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em gestão pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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