Página aberta de livro com poema, ao lado uma caneta sobre mesa de madeira clara e luz suave natural


Há uma história que os prontuários não contam. Uma travessia que se inscreve não na pele, mas na alma; um percurso sinuoso que os fatos apenas rascunham. Fomos ensinados a ler a vida como um inventário de eventos, a buscar a lógica na cronologia, a organizar o caos em capítulos. E, nessa busca pela ordem, nessa civilização que nos adestra para a produtividade, esquecemos a tessitura. Esquecemos que o barro da experiência virou pixel na tela de um currículo, que a memória virou dado, e que cada história de vida é um poema que não cabe em linhas retas.

Mas há um outro modo de cuidar, um que se faz com a mais antiga das tecnologias: a escuta. Uma escuta que não busca apenas o fato, mas a sintaxe da memória. Cada vida é um diário est(ético), um poema escrito com a tinta invisível das escolhas, dos afetos, dos silêncios que o teceram. E o ato de cuidar começa quando se aprende a ler esse texto singular, a decifrar as metáforas que a saudade sussurra, a rima oculta no arrependimento. A palavra, aqui, não é informação; é ferramenta para suturar o tempo, para estancar a eterna sangria da alma.

Não basta a empatia, essa palavra gasta. Buscar sentir com o outro é uma ponte frágil sobre um abismo de alteridade. A verdadeira escuta exige mais: exige a coragem de acolher os desvarios, os afetos que nos assombram e que não ousamos nomear — a raiva que se esconde na resignação, a impotência que nos amordaça, o medo que nos irmana na mesma imperfeição radical. O humano é imperfeito, e é nessa aceitação que o cuidado encontra seu chão.

E como se aprende essa escuta? Nos livros. Na ficção que nos serve de espelho e abrigo. Ali, no silêncio da página, encontramos outras vidas em sua nudez mais radical, e podemos ensaiar a humanidade. Podemos tocar as feridas de uma personagem para aprender a suportar o peso das histórias reais, sem nos partirmos ao meio. A literatura se torna um laboratório da alma, um campo de treino para o coração.

O ato de cuidar, então, se torna um ato poético: o gesto de inventar o hoje, de instaurar um futuro possível a partir dos escombros que a história de vida narra. É a palavra que documenta a existência para que ela não se perca no esquecimento dos resumos. É entender que a narrativa não é um enfeite, mas o modo como o ser humano se inscreve no tempo, como tece o fio entre o que foi, o que dói e o que ainda pode vir a ser.

Pois a verdadeira cura talvez não esteja na correção dos fatos, mas na coragem de ler a história inteira, com suas rasuras e seus versos luminosos. De transformar a biografia em poema. De reconhecer que, antes de sermos um caso ou um diagnóstico, somos travessia. E toda travessia, por mais sinuosa que seja, merece ser contada.

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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