“Um mito é sempre uma ferida aberta na linguagem.” — Octavio Paz, O Arco e a Lira (1956)
Nunca me interessei por animes. Mas meu filho está entrando na adolescência, então comecei a pesquisar alguma coisa. E algumas coisas chamaram a minha atenção. A saga Neon Genesis Evangelion, por exemplo. Assisti a alguma coisa, li outras e formulei algumas impressões.
Shinji Ikari é o herói improvável de Neon Genesis Evangelion. Adolescente órfão de mãe, filho de um pai ausente, é lançado sem escolha na guerra contra seres que ultrapassam qualquer medida humana: os Anjos. Mas a batalha exterior é apenas superfície. O verdadeiro campo é sua alma, um labirinto feito de medo, desejo e recusa.
A alma de Shinji não conhece retidão. Move-se em curvas que se enroscam, em corredores que retornam ao mesmo ponto, em dobras que aprisionam mais do que libertam. É uma alma-labirinto, forjada pela ausência: existir já é queda no abismo.
A máquina que o acolhe — Eva de carne, ferro e memória — não é apenas instrumento de guerra. É placenta metálica, túmulo iluminado, casa do trauma e promessa de transcendência. Cada vez que Shinji adentra o corpo da máquina, não é apenas piloto, mas feto em gestação invertida: nascer e morrer coincidem no mesmo gesto. A batalha se confunde com o parto, e o herói se torna sempre recém-nascido, sempre exilado de si.
No mito antigo, a travessia era clara: sair de casa, enfrentar monstros, retornar transformado. A epopeia era uma linha de progresso. Mas Shinji interrompe a lógica do mito. Recusa o chamado, hesita, foge. Seu primeiro ato não é a coragem, mas o recuo. Não há espada erguida, apenas mãos trêmulas que se recusam a desaparecer. A sua epopeia é o escândalo da fragilidade: habitar o medo sem ser devorado por ele.
Os Anjos que enfrenta não são inimigos exteriores, mas espelhos. Arquétipos despidos de rosto, máscaras do inconsciente coletivo, figuras que revelam mais do que escondem. Cada combate é uma descida ao próprio abismo. Cada vitória aparente é também derrota íntima. A cidade coberta de sangue não é apenas ruína: é líquido amniótico, parto invertido, útero da catástrofe.
Shinji não salva o mundo. Seu gesto mais radical é não ceder à lógica da vitória. Ele refaz a narrativa pela recusa. No limiar do fim, não escolhe o poder, mas o vínculo. Tocar a mão de Asuka é mais revolucionário que destruir qualquer inimigo. Eis o mito moderno: não a glória do herói, mas a persistência do humano, a fidelidade ao frágil.
Orfeu sem lira, Prometeu sem fogo, Cristo sem triunfo. Shinji é todos e nenhum. É a alma despida diante do espelho, murmurando a pergunta impossível: posso viver comigo mesmo? Sua história não oferece respostas, mas devolve o enigma que somos.
No século das máquinas, sua saga é a nossa. Entre corpos cercados por tecnologia e espíritos cindidos pelo medo, resta a tarefa de reconciliar desejo e solidão, comunidade e vazio. Não aprendemos a vencer, talvez nunca aprendamos. Mas resistir, ainda que em silêncio, é uma forma de permanecer.
Este é o mito de Shinji: a confissão de uma humanidade que tropeça, hesita, chora — e ainda assim insiste. A revelação de que a grandeza possível não está em subjugar monstros, mas em suportar a ferida aberta de existir.
E aqui se cumpre a lição política e existencial do nosso tempo: vivemos sob a tirania da técnica que nos ultrapassa, sob o espetáculo da vitória prometida pelas telas e algoritmos, mas que dissolve o sentido de comunidade. Somos legiões de solitários em redes saturadas, órfãos de presença real. O mito de Shinji nos adverte: a verdadeira revolução não é erguer máquinas mais potentes, mas reconstituir laços. Não é dominar a catástrofe, mas atravessá-la sem perder o gesto humano — a mão estendida, o corpo que resiste, a voz que ainda ousa dizer “estou aqui”.
No século XXI, mais que novos heróis, precisamos de frágeis que persistam. Shinji nos lembra: não é a vitória que funda o futuro, mas a capacidade de habitar o medo juntos.
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