Mãos moldando barro úmido sobre uma superfície de madeira clara


No silêncio do ateliê, as mãos buscam o barro como quem procura um pulso. Cada gesto é memória do corpo, mas também memória da realidade que nos atravessa. O sentimento não é adorno do existir, mas condição de presença: estar no mundo é sentir-se nele.

O barro, antes de ser forma, é suscitação: chama o tato, desperta o olhar, instala o corpo na temperie. Há, então, a modificação tônica - aquele instante em que a massa fria aquece, em que o coração se acomoda ao ritmo da criação. O sentimento aparece como fruição, não mero reflexo da mente, mas a música subterrânea que guia os dedos.

Não se trata de inteligência sem carne, nem de técnica sem alma. O barro só se deixa ser quando encontra o gesto temperado. A técnica, nesse horizonte, não é apenas téchne: é modo de habitar a realidade, é ato de dar corpo ao invisível. O acabamento final não encerra, antes abre: o que se modela permanece vivo, porque o sentimento não se apaga no forno - ele queima junto, vitrificado.

Zubiri, o filósofo espanhol, dizia que "a realidade não apenas se apreende ou se escolhe; ela nos atempera, envolve-nos em sua atmosfera". O gesto criativo traduz essa filosofia no barro, na poesia. Cada peça, mesmo imperfeita, carrega o traço do corpo inteiro: organismo e psique inseparáveis, memória e experiência indissociáveis. O vaso, a escultura, a tigela: todos são testemunhos de que o belo não é apenas forma, mas condição de estar no real.

E se a arte é encontro com a vida, como sugere Nietzsche, então criar é dar hospitalidade ao próprio sentir. A obra permanece quando o corpo já não persiste; o barro, endurecido, torna-se memória tangível - documento - de um instante de atemperamento.

No fim, esta crônica nos devolve a pergunta: quem molda quem? Somos nós que damos figura ao barro ou é o barro que, temperado pelo sentimento, nos dá forma?

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@giovanimiguez

Crônica inspirado no ensaio El sentimiento en la experiencia del proceso de creación artística. Reflexiones desde el pensamiento de Xavier Zubiri, de Laura Martino, Maestría en Filosofía y Ciencias Sociales, Instituto Tecnológico y de Estudios Superiores de Occidente, 2025

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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