Silhueta humana pensativa em ambiente urbano ao entardecer, céu nublado e luz suave


“É preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a morte.” — Gal Costa, em "Divino Maravilhoso"


Há algo de bonito no gesto de quem crê. Um corpo que se inclina, uma mão que se junta, um canto que rompe a dureza do mundo. Crer é um verbo com raízes na terra molhada da infância. Crer é precisar de um colo que, por mais invisível que seja, parece segurar o peso dos dias. O problema não está nesse gesto — terno, humano, profundamente poético — mas no endurecimento que por vezes o sucede.

O problema de ser crente — e aqui não me refiro apenas à religião formal, mas à forma de se estar no mundo — é quando a crença se transforma em couraça. Quando o símbolo vira sentença. Quando a metáfora se fossiliza e o mito, que antes era ponte, vira prisão.

Não é crer o problema. É crer demais. Crer sem fissuras. Crer com dentes cerrados e olhos que já não piscam. Porque o que não pisca, cega.

A espiritualidade laica — essa que caminha descalça entre o sagrado e o profano, entre o templo e a rua — não exige ajoelhar-se diante de dogmas, mas convida a dançar com eles. Uma espiritualidade que acolhe o mistério sem querer decifrá-lo como um enigma de prova final. Que respeita os ritos sem deixar que eles aprisionem o tempo. Que escuta as tradições sem deixar que elas calem a história viva que pulsa nas margens.

Ser crente, nesse outro sentido, é se agarrar ao mundo com tanta força que se perde a leveza do voo. É esquecer que dúvida também é oração. Que fé e incerteza são irmãs que, quando andam juntas, fazem do caminho uma escola e do tropeço um mestre.

A árvore que cresce não o faz por convicção. Cresce porque insiste, apesar do chão duro, apesar da seca, apesar dos ventos. Cresce porque duvida, porque busca a luz sem saber se ela virá. Porque suas raízes, mesmo fincadas, não lhe impedem o movimento. Ser árvore talvez seja o oposto de ser crente.

O mundo não precisa de certezas, mas de cuidados. E cuidar exige escuta. Exige não saber. Exige admitir que há sempre algo além da nossa compreensão — e que esse algo pode ser tão divino quanto o que os livros sagrados nomearam.

Talvez o problema de ser crente esteja em querer nomear demais, definir demais, salvar demais. Quando, no fundo, o que nos salva é o silêncio, o abraço, a pergunta que fica no ar. Porque o que vale mesmo é aquilo que nos transforma — e não o que nos endurece.

Crer, sim. Mas com a humildade de quem sabe: a fé mais viva é aquela que respira. E respirar, como duvidar, é abrir espaço para que algo floresça.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta, escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em Gestão Pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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