Mãos segurando cuidadosamente uma fita rosa com elementos digitais ao fundo representando tecnologia e cuidado na oncologia

Somos todos, no fim, números?

Somos uma fração de ejeção, um vácuo nos pulmões, uma contagem de plaquetas. Somos a idade na certidão, o peso na balança, a dose de um remédio. O sistema de saúde, em sua grandeza e urgência, precisa nos quantificar para nos salvar. E há uma beleza brutal nisso. É a beleza da matemática que salva, do protocolo que estanca a hemorragia, do avanço que promete mais tempo. O corpo é um relógio biológico, um sistema complexo de dados que precisa ser lido, interpretado e ajustado para continuar funcionando.

Mas a vida, essa coisa inconstante e imperfeita, recusa-se a ser apenas uma equação.

Uma vida não cabe num prontuário. O medo não tem um código de faturamento, e o amor não tem um resultado de exame. O que é o cansaço do espírito diante de um tratamento que funciona? O que é a dignidade de um último desejo diante de uma regra hospitalar? A dor de um coração partido não aparece em um eletrocardiograma, e o desespero de uma alma solitária não é capturado por uma ressonância magnética. A vida é feita de laços invisíveis, de memórias inaudíveis e de uma busca por significado que transcende qualquer métrica.

O mensurado é a base, o alicerce sólido da ciência. Ele nos diz que o corpo está lutando. O significativo, no entanto, diz-nos o porquê. É o suspiro de quem vê o pôr do sol, o riso de quem ouve a voz de um neto, a paz de quem perdoa. É a história que o corpo, em seus números frios, não consegue contar. É o desejo de um paciente que quer ir para casa para se despedir do seu jardim. É a necessidade de um abraço que conforta mais do que qualquer analgésico. É a história que dá sentido à jornada, não apenas ao destino.

E nós, cuidadores e pacientes, vivemos nesse limiar.

Os cuidadores aprendem a linguagem dos números, a disciplina dos protocolos, a exaustão das noites em claro. Eles veem o gráfico subir e descer, a dor expressa em uma escala de zero a dez. Eles sabem que a eficácia da ciência é o seu maior trunfo. Mas, em silêncio, eles também aprendem a linguagem da alma. Decifram um olhar de súplica, percebem o que não é dito, leem a biografia de uma vida em um aperto de mão. O maior desafio deles é manter o equilíbrio, tratando a doença sem ignorar a pessoa.

Os pacientes, por sua vez, navegam nessa dualidade. Eles entregam seus corpos à mecânica do tratamento, à esperança do número que melhora. Mas a cada exame, eles trazem consigo a bagagem de suas existências: as memórias que os assombram, a alegria que os sustenta, as perguntas que a ciência não pode responder. Eles sabem que a dor física tem um limite, mas o sofrimento da alma é um oceano sem fim. Eles esperam que o médico veja além do gráfico, que a enfermeira ouça a história que a família não conta, que alguém reconheça o ser humano por trás da estatística.

Talvez a verdadeira arte do cuidado esteja em ser fluente nas duas línguas.

Em saber que a medicação é vital, mas que a escuta atenta pode ser igualmente curativa. Que um diagnóstico preciso é necessário, mas a compreensão de quem a pessoa era e quem ainda é, é essencial. É sobre criar um espaço onde o mensurado e o significativo possam coexistir, onde o corpo seja tratado pela ciência, mas a alma seja acolhida pela compaixão. Não é uma escolha entre um ou outro, mas a habilidade de integrar ambos em uma dança complexa, onde o rigor científico e a sensibilidade humana se complementam.

Porque, no final, o que importa não é apenas a duração da vida, mas o significado que ela carrega até o último suspiro. E esse significado só pode ser encontrado nas histórias que contamos, nas lágrimas que dividimos e no calor humano que nos lembra que, acima de qualquer número, somos infinitamente mais. Somos a soma de nossas experiências, de nossas lutas e de nosso amor, e é isso que merece ser honrado.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta, escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em Gestão Pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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