O corpo é um palimpsesto. Em cada célula, sob a pele, repousam histórias sobrepostas: narrativas escritas, apagadas e reescritas não apenas ao longo de uma vida, mas através de gerações. A ideia do corpo como um arquivo vivo, um repositório de memórias e experiências, sempre foi matéria da filosofia e da literatura. Hoje, porém, o que era metáfora encontra uma ressonância literal na biologia molecular. O corpo não guarda apenas a biografia de um indivíduo. Ele é um arquivo que pulsa com os ecos das vidas dos nossos antepassados, que carrega as cicatrizes das suas fomes e os fantasmas dos seus medos.
A tinta invisível dessa escrita chama-se epigenética. Ela estuda mudanças na expressão dos genes que não alteram a sequência do DNA. São anotações à margem do nosso livro genético, pontuações que determinam quais capítulos serão lidos em voz alta e quais permanecerão em silêncio. Essa memória ancestral conversa sem cessar com o presente por meio do expossoma, o conjunto de exposições ambientais que nos atravessam desde a concepção até o fim: a poluição que respiramos, a luz que nos toca, o estresse que esgarça, a dieta que molda, o sono que repara, as negociações íntimas do microbioma. Tudo isso escreve, linha a linha, essa biografia celular.
No terreno da Oncologia, o encontro entre passado herdado e presente vivido se torna mais dramático. Se as células se lembram de exposições e traumas de outras gerações, o cuidado oncológico precisa dialogar com uma biografia que ultrapassa o indivíduo. Um cuidado narrativo integral não escuta apenas a história contada; reconhece que o corpo narra algo mais antigo. Acolher essa dimensão pode ressignificar culpa e fatalismo ligados à predisposição genética, transformando uma aparente sentença em capítulo de uma longa saga familiar que ainda pode ser reescrita.
Para entender como o corpo arquiva, é preciso compreender sua linguagem. A epigenética oferece a gramática dessa escrita. Não muda as palavras do código, mas o modo de leitura. Dois mecanismos centrais são a metilação do DNA e as modificações de histonas. A metilação adiciona pequenos grupos químicos em trechos específicos do DNA e costuma sinalizar silenciamento, instruindo a célula a ignorar certos genes. As histonas, proteínas em que o DNA se enrola como fio em carretel, podem ser modificadas quimicamente para apertar ou afrouxar esse rolo, tornando genes inacessíveis ou disponíveis para leitura. Juntos, esses processos funcionam como uma camada de pontuação e anotação que rege, em tempo real, a sinfonia da expressão gênica.
A descoberta mais provocadora é a herança epigenética transgeracional: marcas que, às vezes, atravessam óvulos e espermatozoides e influenciam descendentes sem alterar o código. Isso questiona a ideia de que o epigenoma embrionário se “limpa” completamente na concepção. Embora a reprogramação seja a regra, evidências crescentes sugerem que certas marcas, sobretudo as forjadas por experiências intensas como traumas ou privações severas, podem fugir da reprogramação e carregar o passado para o futuro. A ciência ainda debate a extensão e os mecanismos desse fenômeno em humanos, o que torna o campo fascinante e, por vezes, controverso. É justamente essa exceção que permite à memória virar herança.
O exemplo pungente é o Hongerwinter, o Inverno da Fome nos Países Baixos entre 1944 e 1945. Gestantes submetidas à escassez extrema deram à luz crianças que, décadas depois, apresentaram taxas mais altas de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares em comparação com a população geral. No DNA, apareceram padrões de metilação alterados em genes cruciais do metabolismo. O corpo materno, em resposta à fome, parece ter preparado epigeneticamente o feto para um mundo de escassez; essa adaptação se tornou danosa quando essas crianças cresceram em abundância. Mais extraordinário ainda foi observar efeitos em alguns netos, a terceira geração, sem exposição direta à fome, sugerindo a transmissão das marcas. O Hongerwinter mostra como a história política se inscreve na biologia e vira capítulo duradouro no arquivo de uma linhagem.
Se a epigenética ancestral compõe os capítulos herdados, o expossoma é a escrita contínua da nossa própria vida. Conceito cunhado por Christopher Wild, designa a totalidade de exposições ambientais da concepção à morte. Abrange agressões externas como radiação, poluição e fumo, e internas como dieta, estresse, sono, ritmos de trabalho, além das conversas do microbioma. O expossoma é uma nuvem pessoal, uma aura viva de influências químicas e psicossociais que dialoga com a genética e o epigenoma. Isso explica por que respondemos de modo tão singular às mesmas exposições e por que a trajetória de saúde é, no limite, profundamente pessoal.
A ligação entre expossoma, epigenética e câncer é direta e clinicamente decisiva. Muitas exposições do expossoma alimentam alterações epigenéticas ao longo da vida. Essas alterações podem desarrumar a regulação gênica de dois modos que favorecem a carcinogênese: silenciando genes supressores de tumor, os travões naturais da proliferação, e ativando oncogenes, aceleradores do crescimento celular. Quando esses controles falham, uma célula comum pode iniciar sua jornada maligna. O câncer, por essa lente, não é apenas azar genético; é consequência de uma conversa longa entre herança e biografia. Duas linhas do tempo que se cruzam e, às vezes, culminam na doença.
A Medicina Narrativa, penso, nasceu para humanizar a prática clínica, valorizando a escuta atenta da história do paciente como caminho de empatia e compreensão da experiência vivida. Essa base é essencial. O paradigma epigenético, porém, sugere que a história oral é apenas uma parte do enredo. O corpo, com suas marcas, conta uma história mais antiga e mais funda, muitas vezes desconhecida pelo próprio paciente.
Um cuidado narrativo integral, por isso, vai além da anamnese convencional. Integra a história contada com a leitura da biografia celular. Investiga não só doenças na família, mas também traumas, migrações, precariedades, trabalhos extenuantes. Considera o expossoma do indivíduo, seu ambiente de vida e de trabalho, seus níveis de estresse, seus hábitos. O clínico torna-se intérprete que ajuda a tecer as ligações entre vida, saga familiar e biologia presente, co-construindo uma narrativa mais completa, coerente e, no fim, mais capacitadora.
Essa virada ajuda a desmontar culpas e fatalismos. A notícia de uma predisposição genética costuma carregar peso e medo de transmiti-la aos filhos. A epigenética oferece outra chave. Quando a herança genética deixa de ser destino e passa a ser base sobre a qual a vida escreve, a perspectiva muda. As marcas epigenéticas são dinâmicas e, em muitos casos, influenciáveis por mudanças de estilo de vida e de ambiente. Isso devolve agência a quem se sentia prisioneiro do sangue. A narrativa se move de "estou condenado" para "tenho vulnerabilidades e ferramentas para navegá-las e reescrever meu futuro celular". Esse processo, central na terapia narrativa, transforma o paciente de vítima passiva em autor do seu percurso de saúde.
No fim, o corpo é arquivo, sim, mas não poeirento nem estático. É documento vivo, em constante edição, na fricção entre herança e experiência. Do alfabeto químico da metilação do DNA à crônica do Hongerwinter, do desenho do expossoma à clínica da Oncologia, a conclusão é clara: nossa biologia é biográfica.
Acolher essa biografia celular, transgeracional e íntima, é gesto de compaixão e de eficácia. Permite ver o paciente não como portador de genes ou lista de sintomas, mas como protagonista de uma saga escrita em cada célula. A medicina que queremos ao menos eu tenho a esperança de ver prosperar, não se contentará em ler o código, mas vai procurar compreender a história e ajudar a escrevê-la. A tarefa mais nobre será pôr a caneta nas mãos de quem adoece para que um novo capítulo, de resiliência, esperança e vida, seja possível.
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