“Metatécnica é língua de morada: costura poder, imaginação e ser; faz da precisão presença e devolve ao comum a autoria do mundo que fabricamos.” - Giovani Miguez
A casa do ser, dizia Heidegger, é a linguagem. Mas o que é a linguagem do ser quando o ser se faz técnico? O que é a morada do homem quando o mundo não é mais um dom, mas um artefato? Essa é a grande questão, o nó que amarra os pensamentos de Bachelard e de Vieira Pinto, por exemplo. Uma inquietação que costura a poética do espaço à geopolítica da dominação. De um lado, a microfísica do íntimo; do outro, a macroeconomia do poder. Ambos, no entanto, falam da mesma coisa: a metatécnica, essa filosofia que, em vez de indagar sobre o ser abstrato, se debruça sobre a realidade que o homem constrói.
A filosofia, para o filósofo Álvaro Vieira Pinto, conforme escreveu Luiz Carlos Montans Braga, não pode ser um cartório, um museu de ideias alheias. Ela tem de ser um bisturi, uma ferramenta para dissecar a realidade concreta, que aponta o dedo para a alienação e para o subdesenvolvimento. A tecnologia, em seu olhar, não é um deus neutro, um motor inofensivo que simplesmente impulsiona o progresso. É uma arma, um instrumento de dominação. Através dela, o trabalho do Sul enriquece o Norte. O subdesenvolvimento não é uma falha, um atraso natural, mas um projeto, uma condição mantida ativamente pela disparidade tecnológica global. A filosofia do desenvolvimento de Vieira Pinto é, portanto, uma metatécnica em sua forma mais política. Ela é a teoria que desvenda esse jogo, que nos arranca da consciência ingênua e nos lança na consciência crítica, um chamado à ação para construir um saber que seja nosso, um saber que nos liberte de sermos meros tabeliães de ideias estrangeiras. A técnica se faz política, e a posse ou a ausência dela torna-se o fator decisivo para a soberania e o destino de uma nação.
A metatécnica, neste sentido, é a própria dialética entre a razão e a imaginação, entre o espaço que se mede e o espaço que se sonha.
Por sua vez, Gabriel Karufe da Rocha, ao analisar Bachelard e Heidegger, nos leva a uma metaontologia do espaço, que não busca o que o espaço é, mas o que ele se tornou, tanto na ciência quanto no devaneio. Rocha demonstra como a ciência moderna, com sua fenomenotécnica, não é apenas a busca pela verdade, mas a criação de uma natureza artificial, de fenômenos que só existem porque foram construídos em laboratório. Para Bachelard, o homem não vive só de técnica. há o espaço poético, o abrigo da casa, o caminho da paisagem, o devaneio da água e do fogo. A geopoética, aqui, é a via de acesso a uma verdade mais profunda, a uma estética da inteligência que não separa o rigor do conceito da liberdade da imaginação. A metatécnica, neste sentido, é a própria dialética entre a razão e a imaginação, entre o espaço que se mede e o espaço que se sonha. O "Bachelard diurno", o cientista, constrói a realidade, enquanto o "Bachelard noturno", o poeta, a habita.
A metatécnica não é uma coisa, mas um gesto, um modo de ser no mundo.
Quando confrontamos essas duas vertentes da metatécnica, o contraste desfaz-se e um diálogo subterrâneo emerge. A amanualidade de Vieira Pinto, o fazer que gera o novo e que diferencia o homem do animal, encontra eco na fenomenotécnica de Bachelard, que também é um fazer, uma produção de realidade que materializa as teorias. O perigo do "congelamento do poder mundial", apontado por Vieira Pinto, reflete o alerta de Heidegger sobre a Gestell, a essência da técnica moderna que reduz tudo a um mero estoque de recursos, um "constanteado" pronto para uso. A mesma força que molda a geopolítica molda a experiência do ser. Para ambos, o problema não é a técnica em si, mas a técnica enquanto espetáculo, enquanto algo que se consome e não se produz. O homem que apenas usa a tecnologia, sem compreendê-la ou criá-la, está alienado, seja no sentido de Vieira Pinto (subordinado a um poder externo), seja no sentido de Heidegger (esquecido do Ser).
A metatécnica, então, revela-se como o campo de batalha da filosofia contemporânea. Ela nos convoca a ir além do que o mundo parece ser, para entender como ele é feito, como ele é construído. Ela não é uma fuga da realidade, mas uma imersão profunda nela, com todos os seus riscos e potências. É o esforço de pensar o devir, de compreender a forma como o homem se fez técnico e, com isso, remodelou o seu próprio ser. E é, por fim, a aposta de que é possível, através do pensamento, recuperar o caminho perdido, o habitar esquecido, e fazer da técnica não uma jaula, mas uma ponte para a nossa própria libertação. O que está em jogo não é apenas o domínio sobre o mundo, mas a própria essência do humano, a sua capacidade de criar, de sonhar e de se transformar.
Assim, a filosofia da metatécnica, na confluência de Vieira Pinto, Bachelard e Heidegger, oferece-nos uma visão multifacetada e poderosa. Vieira Pinto nos dá a chave para entender a estrutura do poder que a técnica cria no mundo, um sistema de exploração e dependência. Bachelard nos dá a chave para entender a estrutura da experiência do ser humano dentro desse mundo, equilibrando o rigor científico com o devaneio poético. E Heidegger nos dá a chave para entender o risco existencial da própria técnica, que, ao nos dar o domínio sobre o ente, nos faz esquecer o Ser, tornando-nos "sem morada".
Conclui-se, portanto, que a reflexão mais urgente da filosofia contemporânea não é mais sobre um ser abstrato e atemporal, mas sobre a complexa, perigosa e fascinante realidade que a própria humanidade, através da técnica, construiu. A filosofia, se quiser ser relevante, deve descer do pedestal do "tabelião" e sujar as mãos com a matéria do devir, com a geopoética da vida e a política do fazer.
Ela precisa ser, em essência, uma metatécnica.
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