“A saúde é a vida no silêncio dos órgãos.”
- Georges Canguilhem
“Competência narrativa é reconhecer, absorver, interpretar e agir diante das histórias alheias.”
- Rita Charon
Permitam-me retomar alguns conceitos já discutidos aqui.
Na oncologia, a técnica não é apenas instrumento. É língua que pode ferir ou amparar. Quando a chamamos para ser metatécnica, pedimos que ela fale como quem devolve morada à vida contrariada. Precisão sem presença produz deserto. Presença sem precisão produz impotência. O cuidado oncológico, enquanto proposta narrativa, é uma síntese praticável onde poder, imaginação e Ser se escutam. Cidade, casa, risco. Corpo como hábitat, corpo em hábito, corpo como habitante. Lembra?
No hospital, a cidade do corpo fica visível. Ruas finas de capilares, praças de linfonodos, obras emergenciais na hemodinâmica. O tumor chega como um urbanista tirano que fecha vielas, impõe desvios, ergue fronteiras onde antes havia vizinhança. A técnica entra com mapas, sondas, contrastes, agulhas guiadas por imagem. Nada disso é inimigo. É engenho que pode reabrir caminhos.
Mas técnica não é neutra. É trabalho acumulado e projeto político. É escolha de quem terá acesso ao mapa e quem permanecerá perdido. Quando Oncologia vira território de plataformas opacas, patente que não dialoga, algoritmo que decide sem prestar contas, a cidade do corpo passa a obedecer a cartórios longe da sua rua. Vieira Pinto, como vimos, ensinou a desconfiar do tabelião de ideias. O cuidado que apenas carimba protocolos importados esquece o sotaque da casa e a geografia do bairro. Quem fala pelo paciente perde o paciente de vista.
Metatécnica aqui significa soberania com partilha. Pesquisa que nasce no território e retorna a ele como linguagem clara. Bioinformática que explica suas premissas. Radioterapia que reconhece escalas de acesso. Protocolos que podem ser adaptados sem punir a singularidade. A pergunta-guia é simples: o que esta cidade precisa para voltar a ser habitável? Alguns centímetros a menos no laudo são vitais. Mas a habitabilidade também mora no tempo de espera, no transporte, no cuidado com a fome, na possibilidade de seguir sendo avó, marceneiro, professora.
Hábitos sustentam o cotidiano como vigas silenciosas. O banho morno às sete. O café na caneca azul. A leitura na varanda. O câncer desalinha essa coreografia. O relógio do hospital troca a música da casa. A quimioterapia altera paladar, pele, sono. A cirurgia altera mapa e espelho. A radioterapia desenha calendários que o trabalho nem sempre acolhe. A vida passa a caber entre números de prontuário.
É aqui que a imaginação material de Bachelard se torna clínica. Fenomenotécnica não é apenas produzir fenômeno no laboratório. É produzir condições de cuidado no cotidiano. Ajustar o gesto ao material de cada vida. Copos de vidro pedem uma temperatura. Peles pedem uma luz. Rotinas pedem um compasso. Quando o serviço aprende a ler matéria como linguagem, a casa do paciente volta a falar.
Deve-se propor um “prontuário narrativo oncológico”. Pequeno, efetivo e afetivo. Escrito com o paciente. Como prefere ser chamado. O que deseja preservar? Qual foi a última alegria antes do diagnóstico? Que o medo não cabe na sala de espera. Que metáfora o ajuda a entender o tratamento? Não é ornamento. É engenharia fina do vínculo. Orienta decisões. Modula doses. Ajusta horários. Traduz riscos para que riscos sejam de fato escolhas.
Deve-se propor também conferência de linguagem em consentimento informado. Trocar jargão que intimida por frases que cabem na boca do dia. O mesmo rigor. Outra dicção. Não se trata de infantilizar. Trata-se de praticar a precisão do compreensível. A isso chamo presença.
Somos habitantes do corpo e de um tempo. O século acelerou tudo. No hospital, o adensamento técnico pode expulsar as moradas lentas. Heidegger chamou de perigo o mundo transformado em estoque. Em Oncologia, o risco é tornar a pessoa um repositório de dados e a equipe, zeladora de indicadores que já não conversam com a biografia que se desenrola diante de nós.
A resposta pede liturgia laica, uma liturgia do cuidado. Interrupções deliberadas no protocolo para perguntar se seguimos no rumo certo. Pausas para reouvir a história. Reuniões breves para revisar metáforas que estamos adotando sem perceber. Quando falamos em guerra, quem está perdendo? Quando falamos em batalha, quem se sente culpado por cansar? Quando falamos em imperador, o que naturalizamos como destino? Palavras são máquinas discretas. Se não as revisamos, elas nos governam.
Prefiro imagens que convidam. Jardim para cuidar de tempos e doses. Cidade para organizar redes e corresponsabilidade. Tecido para lembrar que cada fio importa e que nenhum remendo é vergonha. Um hospital que cultiva essas imagens cria espaço para a pergunta que salva dignidade. O que é qualidade de vida para você neste momento? A resposta inclui moléculas. Inclui também um bolo no domingo. Um banho de mar – como faz a Preta Gil. Um perdão. Uma despedida.
A dupla hélice (gosto desta metáfora) do nosso tempo brilha no centro da oncologia. Uma fita diz: precisão. Sequenciamento, radiômica, terapias-alvo, aprendizado de máquina. A outra fita diz: presença. Olho que sustenta, mão que aquece, silêncio que acolhe. Sem a primeira, o cuidado cega. Sem a segunda, o cuidado seca.
A integração não é teoria. É prática de agenda. A máquina realiza o que dela se espera para libertar o humano do que só o humano pode exercer. Em vez de transformar o médico em supervisor de algoritmo, transformamos o algoritmo em suporte para escolhas informadas. Em vez de reduzir a enfermeira a dispensadora de dose, reconhecemos sua escuta como sensor de alta sensibilidade para aquilo que não aparece no hemograma. Em vez de terceirizar consolo para frases genéricas, treinamos equipes para competência narrativa: reconhecer, absorver, interpretar e agir diante das histórias alheias.
Isso se ensina. Com oficinas de imaginação material que devolvem aos profissionais o contato com o fazer concreto. Madeira, vidro, papel, tecido, código. A matéria educa a mão para a paciência e, por contágio, educa a escuta para o ritmo do outro. Com rondas de linguagem que avaliam materiais escritos e falados. Com grupos de leitura que abrem espaço para biblioterapia como higiene emocional de equipe. Sem essa higiene, o burnout deixa de ser risco e vira regra. Cuidar exige que o cuidador tenha onde morar.
Não há metatécnica sem pensar o comum. O cuidado oncológico acontece em um país com distâncias, filas, desigualdades. A técnica que interessa ao SUS precisa de estratégia. Protocolos custo-efetivos que não transformem cidadania em loteria molecular. Regulação que dialogue com o território. Equipamentos de alta complexidade que não desertifiquem a atenção básica. Pesquisa que não se encerre em si, mas devolva melhoria de percurso para quem sustenta o sistema.
Quando falo em soberania técnica, não defendo autarquia de laboratório. Defendo alfabetização pública da tecnologia para que a sociedade participe das suas escolhas. Que um serviço explique por que adotou um esquema e não outro. Que preste contas de como usa o tempo, o dado, o dinheiro. Isso é metatécnica na democracia. Técnica que se explica para poder cuidar.
O corpo como hábitat pergunta de engenharia sensível. O que torna esta vida habitável durante o tratamento. Transporte, alimentação, sintomas, tarefas de casa. Plano de cuidado que desenha rotas com quem caminha. O corpo em hábito pergunta de rito. Que pequenos gestos preservam a pessoa em meio ao protocolo. Horários, música, banho, leitura, visitas. Ajustes que devolvem poder ao que pareceu sequestrado. O corpo como habitante pergunta de sentido. O que vale mais agora. O que precisa ser dito. O que precisa ser protegido. Quando esse diálogo entra nos papéis, decisões difíceis ficam menos solitárias.
Recapitulemos. Ferramentas mínimas para começar já: um prontuário narrativo oncológico com campos breves e obrigatórios de história de vida, metáforas preferidas e objetivos de cuidado; um consentimento em língua comum, lido em conjunto e com espaço para reescrita pelo paciente; rondas mensais de metáforas na equipe para desalistar guerras e convocar cidades e jardins; oficinas trimestrais de imaginação material para treinar ritmo, paciência e escuta; e devolutivas públicas dos serviços sobre critérios de incorporação tecnológica e resultados que importam às pessoas.
Volto à imagem inicial. Técnica é língua. Pode ser decreto que cala ou conversa que sustenta. Em oncologia, o diagnóstico divide a vida em antes e depois. O que se espera do cuidado é que costure uma ponte entre essas margens. A ciência entrega o mapa. A presença guia o passo. Metatécnica é dar nome a essa costura para que ela não dependa do heroísmo de indivíduos. É projeto. É política do sensível. É ética do ritmo.
Se me perguntam o que significa cuidar, respondo com a simplicidade possível. É devolver autoria a quem a doença tentou sequestrar. É escolher palavras que abrem espaço. É organizar tecnologias para que sirvam a pessoas e não o contrário. É manter aceso o abajur na mesa de cabeceira, mesmo enquanto as máquinas trabalham. Porque a cura nem sempre chega. O cuidado, sim. Nele, a vida encontra ainda uma cadeira onde sentar, um copo de água, um nome chamado com respeito.