“Seria ingênuo buscar solidez num céu de ideias… a própria ideia de conhecimento objetivo é sustentada por nossas rêveries.” — Merleau-Ponty.
Na sala de espera do posto, uma mãe tenta decifrar o sono raso do bebê. Entre o choro e a respiração miúda, ela consulta o aplicativo do laboratório, desliza o dedo por nomes compridos, copia e cola siglas que prometem futuro. Há números que brilham como faróis. Há números que acendem alarmes. E há esse corpo pequeno, morno, que só pede colo.
Penso que a saúde tem seus truques de prestidigitação. Enquanto anuncia controle, nos convida a sonhar com o impossível: que nada mude, que a vida obedeça, que o tempo não nos dobre a coluna. O sonho é antigo. Chama-se segurança. E se veste de gráficos, escalas, probabilidades. Ali perto, o relógio digital pisca sua aritmética. Aqui, a criança pesa no braço e inventa outra medida.
Haveria dois modos de habitar esta cena. Um, o do fabricante (o homo faber). Coleciona ferramentas, confere parafusos, quer domar o destino como quem endireita uma porta torta. O outro, o do cuidador (o homo curare). Aprende a ouvir o rumor das dobradiças, entende que toda casa range, e que o cuidado é óleo, não martelo. Talvez sejamos mistura, artesãos entre chaves e panos, entre precisão e presença.
A mãe volta os olhos para a tela. Pergunta em voz baixa: e se isso, e se aquilo. O médico responde com cautela. Fala do macro e do micro, do que se vê no mapa e do que só aparece quando se chega à rua. Repete que o exame não é destino, é lanterninha. Do outro lado, o bebê espreguiça e boceja como quem devolve ao mundo uma lição simples: nenhum dado embala, nenhum resultado dá de mamar.
Sinto que o corpo dita a gramática desse encontro. Na pele que arrepia, na mão que afaga, na febre que sobe com seu alfabeto rubro. O corpo mede o mundo. E nessa régua macia cabe o imprevisto, a revelação, o tropeço que vira dança. Se a ciência nos oferece uma janela ampla, é o cuidado que ensina a abrir a veneziana sem acordar a casa inteira.
Poderíamos desejar uma homeostase de novela, dias que não variam, curvas sempre dóceis. Mas viver não se passa a limpo. Viver é navalha que apara as arestas. O melhor que o cuidado faz é erguer estruturas, montar vizinhanças, convocar mãos. Quando a cidade se organiza para que um corpo frágil não vire estatística, a saúde deixa de ser devaneio privado e se torna chão partilhado.
No fim da consulta, a mãe guarda o celular no bolso, beija a testa suada do filho e sorri cansada. Continua sem todas as respostas. Ganha, porém, uma cena que não cabe em relatório: três respirações cruzadas no mesmo quarto, o ar entre elas fazendo ponte. Talvez seja isso que chamamos de cura quando não há cura. Um gesto que não promete eternidade, só companhia. Um país pequeno chamado colo, onde existir deixa de ser prova e volta a ser presença.
Inspirado em “Health and Other Reveries”, Joel Michael Reynolds.
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