Professora lendo para grupo de estudantes atentos em sala de aula colorida com estantes de livros e cartazes motivacionais


“A literatura é um direito.” — Antonio Candido

O sinal toca e, por um instante, a escola prende a respiração. Depois, tudo volta a circular: corredores se enchem de passos, mochilas batem no quadril, um riso corta a paisagem. No canto da biblioteca, alguém encosta a cabeça na lombada de um livro como quem procura temperatura. Ali, a literatura não é só conteúdo. É abrigo. Ler pode ser um acolhimento silencioso.

Quando não estou decepcionado com o fascínio dos jovens com os celulares, costumo pensar a escola como uma lugar que respira. Tem pulmões de papel. Quando falamos de biblioterapia, os livros não chegam para dar lição, mas para afinar o ar. Não se trata de receita. É cuidado. É a arte de oferecer histórias para que meninos e meninas possam se ouvir por dentro. A biblioterapia, no chão da escola, é ponte entre conhecimento e sensibilidade. Um modo simples de dizer à criança ansiosa, ao adolescente cansado, ao professor sobrecarregado: "há uma palavra que pode te acompanhar".

Vejo essa possibilidade nas mediações de leitura. Às vezes, basta uma roda pequena. Cinco cadeiras, um poema, dois contos, um fiapo de crônica. Ninguém é obrigado a falar. Quem quiser, apenas escuta. A palavra, quando não exigida, vem com o tempo certo. Em uma dessas rodas, lemos um poema de saudade. Depois, perguntei: em que momento você já sentiu isso. O que te trouxe consolo. Ninguém precisou responder para a turma toda. Alguns desenharam. Outros escreveram uma linha no caderno. Houve quem ficasse em silêncio e, ainda assim, saísse mais leve.

A biblioterapia é essa delicadeza: abrir espaço, sem furar ninguém.

Gosto também dos diários de leitura e emoção. Um caderno simples serve. O aluno escreve uma frase, cola um recorte, anota uma cor que o poema deixou. Não é avaliação. É cartografia íntima. Com o tempo, o diário vira janela. A criança descobre que pode nomear coisas difíceis com palavras pequenas. A escrita, quando senta ao lado da leitura, faz companhia.

Há dias em que a escrita pede brincadeira. Oficinas de cartas para personagens. Cartas que começam assim: “Querida personagem, ontem não consegui dormir. Acho que você me entende.” Ou narrativas inventadas a partir de um medo real, um susto na rua, uma pergunta que ninguém respondeu. Quando o texto nasce do vivido, ele devolve coragem. E a coragem, na escola, é um bem comum.

Nem todo mundo gosta de ler em voz alta para a turma inteira. Por isso, duplas e trios funcionam como uma respiração mais curta, mas eficiente. Um lê para o outro. Trocam impressões. Descobrem que o mesmo conto não é o mesmo quando passa por olhos diferentes. Depois compartilham com o grupo uma imagem, uma ideia, uma sensação. Assim a escuta se treina sem alarde.

A biblioteca, com suas mesas e estantes, também aprende a ser colo. Almofadas no canto, luz morna, uma pequena curadoria de títulos que falem de amizade, autoestima, diversidade. O aluno entra, escolhe um livro, e pode dizer por que o escolheu. Às vezes diz para ninguém, só para si. Outras vezes para a bibliotecária, que sorri como quem oferece água. Projetos como "Leiturômetro" e "Jardim Literário" florescem nesses espaços. Eles mostram que o incentivo à leitura não é só contagem de páginas. É cultivo de vínculos.

Quando a leitura encontra outras linguagens, a escola respira ainda melhor. Um poema sobre o tempo pode terminar num relógio artesanal feito em aula de artes. Uma crônica sobre o rio da cidade pode virar cartaz de cuidado ambiental. Uma canção pode ensinar a pausa do verso. Literatura, música, ciência, desenho. Tudo conversa. Tudo aprende a dizer de outro modo a mesma pergunta: como estamos vivendo.

Há também uma alegria que muda de mãos quando o aluno se torna mediador. Uma vez por mês, dois estudantes escolhem um livro, preparam uma breve apresentação, conduzem a leitura. Não é espetáculo. É partilha. Protagonismo não é palco. É gesto de pertencimento. Quem guia, aprende a cuidar do ritmo da roda, do silêncio de quem está tímido, do brilho de quem quer falar.

É preciso, claro, delicadeza. Cada história pode acender memórias. Respeitar o silêncio é uma forma de escuta. Ninguém deve ser empurrado para a lembrança que ainda dói. O cuidado é não transformar a biblioterapia em tarefa. É permitir que a leitura seja encontro e não exigência. Quando o professor propõe sem pressionar, a escola vira lugar de confiança.

É importante acender essas lamparinas. É o que pretendo com esse ensaio. Convidar educadores a pensar a leitura como ato de cuidado. Sugerir que se programem encontros curtos e constantes, a escolher textos que falem com o cotidiano da turma, a apostar no pequeno. Porque, no fim, é de pequenos gestos que a escola é feita. Uma pausa de cinco minutos ao final da aula. Uma linha escrita no caderno. Um livro aberto enquanto a chuva cai lá fora. E aí, aceita trilhar esse caminho?

Penso, às vezes, na escola como um jardim. Existem sementes que só brotam no tempo delas. A biblioterapia é um modo de preparar a terra. A rega é simples: um poema lido devagar, um conto dividido em trio, um diário com uma frase por semana, uma roda em que o silêncio tem lugar. Quando as flores surgem, não são de nota alta nem de medalha. São de presença. O estudante começa a reconhecer o próprio rosto na superfície da palavra. A professora respira melhor. A comunidade se olha com mais cuidado.

No final do dia, quando o pátio desinfla e a biblioteca recolhe os seus livros, fica no ar um restinho de verso, um cheiro de página, um murmúrio de conversa. É nesse quase nada que a escola se reconcilia com a sua função mais bonita: formar gente. E gente, todos sabemos, não se forma a golpe de régua. Se forma em escuta, em vínculo, em palavra que se oferece como copo de água.

Talvez por isso eu insista: integrar biblioterapia às práticas pedagógicas não é moda, é gesto de humanidade. Faz da leitura uma prática de cuidado. Devolve ao livro o seu ofício antigo de nos lembrar que não estamos sozinhos. Quem entra por essa porta sai com uma frase no bolso, um desenho na margem, um suspiro novo. E a escola, lugar que respira, agradece.

A vida, que é maior do que o boletim, agradece ainda mais.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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