Abro um livro como quem abre a janela da manhã.
A cidade ainda boceja. O café fuma numa xícara pequena, e a página, branca, espera meu primeiro passo. Não há pressa. A poesia pede esse gesto antigo: uma cadeira, um corpo, um pouco de silêncio. É quando percebo que os versos não estão fora do mundo. Estão aqui, no tilintar da colher, no sussurro da rua, na lembrança que insiste. Poesia é um lago raso e fundo ao mesmo tempo: devolve o rosto de quem se inclina.
Nos últimos tempos, tenho visto mais gente inclinada. Talvez por cansaço, talvez por coragem. Talvez seja só a minha bolha mesmo. Abrir um livro de poemas virou espécie de autocuidado. Não o autocuidado das vitrines, mas o que nos devolve o pulso, a temperatura, a escuta. Um verso não entrega respostas; oferece companhia. E a companhia é uma forma delicada de cura.
Falo por experiência. Em certa tarde, neste meu ateliê po(ético), algo bem pessoal, espalhei livros sobre a mesa. Eram muitos, de tamanhos e tons distintos. Peguei Rapapés & apupos, da Bruna Beber, e sorri sem alarde. Em Mostra monstra, de Angélica Freitas, fui rasgado, mas sem me ferir. Li Gris, de Cida Pedrosa, como quem abre a janela do próprio corpo para ver a cidade entrar.
Biblioterapia, a palavra é um bicho arisco: se tenta laçar, foge. Se convida, ela vem. Leio com avidez. Quando tropeço, guardo o tropeço. As palavras, assim, aprendem a respirar comigo, no ritmo da minha insanidade. Já li poema que me devolveu a infância. Outro, fez com que o luto ganhasse um nome que não doesse tanto. A raiva e o riso já estiveram um em cada mão ao mesmo tempo. E eu, que senti o encontro e apenas guardei o milagre: não o milagre de estar curado, mas o de estar acompanhado, cuidado.
A poesia, quando se aproxima do cotidiano, reage com uma graça artesanal. Ana Martins Marques inventaria xícaras, gavetas e desencontros e, de repente, a casa inteira vira coração. Ryane Leão acende a coragem de dizer não e de dizer sim ao próprio espelho. Lívia Natália, com força de mar e de memória, ergue um corpo que ninguém mais derruba. Viviane Mosé nos ensina que crescer é também aprender a voltar. Manoel de Barros, velho mestre de brincar, nos devolve o direito de nomear as coisas de novo. E quando Ailton Krenak lembra que a vida não é utilidade, o poema vira aldeia dentro da gente.
“Mas como escolher?”, me perguntam. Não há segredo. Escolher poesia é como escolher um lugar para sentar: depende de como você chega. Há dias de abraço. Neles, Bruna Beber, Ana Martins Marques, Manoel de Barros. Há dias de lâmina. Aí penso em Angélica Freitas, Lívia Natália, Paulo Scott. Para lutos e recomeços, Ryane Leão e Aline Bei. Para quando a cidade é corpo e o corpo é cidade, volto a Cida Pedrosa, às vozes de Ricardo Aleixo, às margens onde a palavra encontra a rua.
E há a travessia de quem escreve. Entre um encontro e outro, fecho a porta deste meu ateliê simbólico e volto ao meu caderno. Escrever, para mim, sempre foi uma forma de respirar por dentro. Penso no guardador de águas que tento ser: alguém que recolhe pequenos cursos, filetes de sentimento, e os oferece de volta em copos de verso. Nem sempre dá certo. Às vezes a água turva. Outras, as mãos falham. Mas continuo, porque desconfio que o poema, quando nasce, ajeita alguma coisa do lado de dentro. Não arruma o mundo. Arruma um canto do peito, o suficiente para seguir.
Gosto de imaginar a poesia como uma técnica suave do cuidar. Não a técnica das máquinas, mas a arte de afinar presenças. Ler em voz alta, por exemplo, muda o corpo. A palavra se apoia nos ossos, ganha timbre, vive. Pausas longas entre estrofes fazem o pensamento apear. Um poema curto pode virar mantra de bolso, frase para repetir baixinho na fila do ônibus. E sublinhar, ah, sublinhar é uma espécie de colheita: marcamos no papel aquilo que queremos guardar no corpo.
Há também a alegria do encontro. Ler sozinhoé maré mansa. Ler em roda é correnteza boa. Partilhar um verso abre passagens secretas entre pessoas que mal se conhecem. Começa numa leitura, termina em amizade. Ou fica apenas num olhar cúmplice, que já é muito. E quando o assunto é cuidado, o coletivo tem essa força: amplia o que sentimos, devolve escala humana ao que parecia gigante.
Nem tudo, porém, é macio. A poesia também desce ao porão das perguntas difíceis. Fala de política, raça, gênero, sobrevivência. Em vozes como Mel Duarte, Ricardo Aleixo, Dandara Aziza, o poema vira rua, denúncia, dança. Cuidar de si, aprendemos, não exclui cuidar do outro. Pelo contrário. A saúde da minha respiração depende do ar que todos respiram. Poesia lembra isso com uma beleza que não pede licença.
Se você me perguntar por onde começar, digo: comece pelo seu agora. Há um poema que te procura neste exato momento. Ele pode estar no alto de uma prateleira, pode estar num sebo, pode estar num link perdido, pode estar numa conversa de bar. Quando o encontrar, não force. Sente. Leia. Se não der liga, não insista. Livros, como pessoas, têm seu tempo. Alguns só falam conosco anos depois. Outros nos acompanham por décadas, mudando de voz junto com a nossa.
Depois de saciado o momento de autocuidado, guardo os livros , apago as luzes, fecho a porta. A cidade retomou o barulho. Ainda carrego no ouvido um verso que alguém leu e que agora é meu também. Penso que, se há um sentido para tudo isso, é simples como água: deixar que a poesia, com sua delicadeza insistente, nos ensine a estar. Estar aqui. Estar com. Estar em si sem se fechar. Estar no mundo sem endurecer.
Talvez seja essa a lição mais funda que os versos me deram: a de que viver não se engole. Se mastiga. E mastigar, em boa companhia, é um jeito bonito de atravessar os dias.
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