Crianças e jovens lendo livros juntos em ambiente escolar acolhedor com mediador presente


“A leitura do mundo precede a leitura da palavra.” — Paulo Freire


A cena ainda que cada vez mais rara, se repete e, mesmo assim, nunca é a mesma: uma criança diante de um livro. Os olhos ora atentos, ora navegando para longe, como quem testa a bússola. Perto, um adulto segura o fio do tempo com cuidado. Há sussurros. Há um silêncio que não é vazio, é campo. Ali começa o rito de passagem que não tem trombetas, mas tem respiração. A autonomia leitora nasce assim, miúda, entre páginas e pausas. A mediação de leitura pavimenta esse caminho com escuta, afeto e encontros.

Ser mediador é aceitar o ofício de ponte. Não se trata de empurrar gente para o outro lado. Trata-se de sustentar um arco onde cada um atravessa no seu passo. A ponte é feita de escolhas, não de ordens. Por isso, quando penso em mediação, penso em convite. O convidado é livre para entrar, sentar, sair, voltar. As palavras não são fila. São casa aberta.

Na escola, a ponte tem muitos nomes. Roda de leitura, conversa depois do conto, um poema que fica no quadro até a tarde. A sala de aula, quando escuta, aprende a respirar por páginas. Um professor lê um trecho e pergunta o que ficou na pele. Outro abre uma oficina de escrita e a turma responde com cartas para personagens, confissões discretas, desenhos que lembram cheiros. Não há texto obrigatório quando a finalidade é formar leitores para a vida. O que há é ritmo. Cada estudante encontra o seu. Alguns devoram capítulos. Outros rumam devagar, mastigando a mesma linha até que ela diga tudo o que pode.

Em casa, a ponte é colo. Livro na cabeceira, leitura cochichada antes de dormir, histórias inventadas na cozinha enquanto a água ferve. A família descobre que ler junto pode ser silêncio compartilhado. Não precisa de meta, nem recompensa. Precisa de presença. Uma estante baixa, livros à mão, o direito de escolher o que levar. A escolha é semente de autonomia. Quando a criança aponta o título que quer, ela diz de si, ainda que não saiba. Nesse gesto, o mundo se alinha um pouco.

A comunidade também tem margens que pedem travessia. Praças com roda, biblioteca de bairro, ONG que vira sala de leitura no sábado de manhã. Livros passam de mão em mão como frutas. Quem lê em voz alta planta sombras para o calor da semana. Em slams e saraus, a palavra aprende o corpo, e o corpo descobre que também escreve. A leitura não é ornamento de vitrine. É ferramenta de pertencimento. Em lugares onde o ruído da vida costuma ser mais forte que o das páginas, um clube de leitura é um abrigo.

A tecnologia sopra janelas. Não é inimiga. Audiolivros para quem tem pressa de ouvir com o corpo todo. Leitura em tela para quem mora longe da livraria. Clubes virtuais que aproximam sotaques e idades. Podcasts que fazem resenhas virarem conversa de corredor. O cuidado aqui é não perder o tempo humano. Em meio a notificações, a mediação lembra que há um outro pulso. Propõe leitura lenta. Pausas. A coragem de interromper para perguntar. A delicadeza de aceitar uma discordância como quem aceita o vento mudar de direção.

Tudo isso exige uma escuta que seja, ela mesma, uma leitura. O mediador não é centro. É margem generosa. Acolhe silêncios porque sabe que, às vezes, é no silêncio que a história termina de dizer o que precisa. Valoriza o ponto de vista que tira a gente da zona confortável, porque literatura é polifonia. E pergunta. Pergunta muito. O que essa cena te lembrou? Qual imagem ficou na tua cabeça? Que final você escreveria. Perguntas são portas. Cada leitor abre as suas.

Diversidade não é decoração. É a matéria da ponte. Acervos que contem o mundo em muitas línguas, muitos corpos, muitos territórios. Poesia, conto, HQ, fábula, texto informativo. Autoras e autores negros, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, urbanos, rurais. Livros bilíngues, braille, leitura assistiva. Quando o leitor se reconhece numa história, ele se vê digno de estar na cultura do livro. Quando encontra a diferença, aprende a respeitar o que não é espelho.

A autonomia leitora não aparece de repente. É processo. Vai do dedo que acompanha a linha ao gesto de sublinhar, da leitura em dupla ao prazer de ler sozinho, da sugestão do mediador à escolha soberana do próximo livro. O leitor autônomo aprende a se guiar pela própria curiosidade. Interpreta o mundo, questiona, sonha, argumenta com cuidado. Carrega a leitura como ferramenta de cidadania e de autocuidado. Escolher o que ler é escolher como se escutar.

Vivemos cercados de vozes. Entre tantas, decidir ouvir o texto é um ato de liberdade. A mediação não entrega respostas prontas. Oferece um campo onde as perguntas podem pastar sem medo. Nesse campo, vínculos crescem. Colegas que não conversavam dividem uma página. Famílias criam tradições de leitura. Comunidades encontram no livro um modo de dizer de si e de ouvir o outro. É bonito de ver quando a escola entende isso. É bonito de ver quando a rua também entende. O livro vira praça dentro da gente.

Volto à cena inicial. A criança diante do livro. O adulto por perto. O tempo escorrendo em silêncio ou em vozes baixas. Entre uma página e outra, algo se acende. Não é milagre estrondoso. É luz de lamparina. Suficiente para caminhar no corredor, encontrar a cozinha, aquecer um pouco de leite, voltar para a cama e continuar. Ler, no fundo, é isso. Um modo de acender a própria casa por dentro.

A ponte permanece. O rio corre. Quem atravessa aprende dois movimentos: olhar o mundo e, ao mesmo tempo, ser lido por ele. Quando chega à outra margem, entende que a travessia não acaba. Recomeça no livro seguinte. E no seguinte. E no outro. Porque ler é um ato de continuação. E formar leitores autônomos é assegurar que essa continuação não dependa de ninguém, apenas do desejo de seguir perguntando.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta, escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em Gestão Pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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