“Entre a ciência que mede e a dor que narra, cuidar é devolver autoria: fazer do corpo contrariado uma biografia possível, onde cada fio reatado é uma nova norma de esperança.” – Giovani Miguez
Quando li Canguilhem, há uns dez anos, senti uma espécie de vertigem lúcida. As palavras de "O Normal e o Patológico" não eram apenas filosofia; eram um espelho que devolvia uma imagem mais nítida da própria condição humana.
A saúde, ele dizia, é a vida no silêncio dos órgãos. Uma verdade tão simples e tão profunda que, depois de lida, parece impossível que o mundo tenha existido sem ela. A normalidade não era uma média estatística, um ponto fixo numa curva de Gauss, mas uma capacidade dinâmica, a aptidão para instituir novas normas diante das infidelidades do meio. A doença, portanto, não era um mero desvio na régua da fisiologia, uma variação quantitativa do normal. Era, antes, uma nova ordem de vida, uma norma diferente, mais restrita e precária, mas ainda assim uma forma de existir.
A vida contrariada, o organismo forçado a se reorganizar para sobreviver. Essa ideia decantou em mim ao longo dos anos, saindo das páginas do livro para encontrar eco nos corredores de hospitais, nas conversas sussurradas em salas de espera, no olhar de quem recebe um diagnóstico que divide a vida em "antes" e "depois". E nenhum diagnóstico faz isso com a brutalidade do câncer. O câncer, mais do que qualquer outra condição, é um sequestrador de narrativas. Ele não apenas impõe uma nova e restritiva norma biológica; ele tenta apagar a história pessoal do indivíduo e substituí-la pela sua própria crônica – a história da doença.
O paciente deixa de ser o arquiteto, o professor, o amante de jardins, e passa a ser definido pelo estadiamento do tumor, pelos ciclos de quimioterapia, pelos marcadores que sobem ou descem. Sua biografia é subitamente editada por um léxico estranho e assustador.
De um lado, temos o prontuário: um inventário de desvios, a narrativa fria dos números que se afastam da média, a descrição objetiva de um processo patológico. Do outro, a pessoa: um universo de normas desfeitas, uma biografia interrompida, um enredo pessoal lançado ao caos. O silêncio dos órgãos foi rompido por um grito, e esse grito é uma história que precisa ser ouvida.
E foi aí, nesse entroncamento entre a filosofia da vida e o sofrimento do corpo, que a tese de um cuidado oncológico narrativo começou a se tecer em mim. Não como uma técnica, mas como uma metatécnica da escuta. Não como um protocolo, mas como uma partilha. A medicina, com sua ciência indispensável, trata o patológico. Mas quem cuida do normal perdido? Quem ajuda a construir a nova norma possível?
O cuidado oncológico narrativo, conforme entendo, parte do princípio de que curar, ou cuidar quando a cura biológica não é mais o horizonte, é ajudar a pessoa a reaver o fio da sua própria história. É compreender que o evento da doença não se esgota no corpo; ele reverbera em todas as dimensões da existência, reconfigurando relações, sonhos, medos e esperanças. É um trabalho de escuta atenta à história que o paciente conta, não apenas sobre seus sintomas, mas sobre quem ele era antes, quem ele se tornou e quem ele ainda deseja ser.
Significa sentar-se ao lado de quem sofre e perguntar: "Para além da doença, quem é você? Qual é a sua história?". Significa validar a dor da narrativa interrompida e, a partir daí, ajudar a tecer novos fios, a encontrar sentido mesmo na desordem.
A saúde, como dizia Canguilhem, é a capacidade de ser normativo. Talvez, quando a normatividade biológica está irremediavelmente comprometida, a tarefa mais humana do cuidado seja a de resgatar a normatividade biográfica. É devolver ao paciente a autoria sobre a própria história, a capacidade de instituir novas normas de sentido para uma vida que, embora alterada, se recusa a ser apenas patológica. É reconhecer que, mesmo quando o corpo se cala em definitivo, a história contada pode ecoar, íntegra e luminosa, para além do silêncio.
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