A dúvida é a respiração inaugural da consciência.
Não se trata apenas da hesitação que oscila entre duas escolhas, mas da fratura essencial que impede o mundo de se tornar pedra. É ela que abre espaço, que impede o pensamento de se acomodar na quietude da certeza. Quem duvida, se expõe; quem não duvida, se fecha em repetição. Por isso a dúvida não é fraqueza, é gesto de coragem — a coragem de não ter muralhas, de viver na pele o inacabado. É o elogio de um viver que não se reduz a fórmula.
A dívida é o tempo inscrito no corpo.
Nasce antes de nós, quando recebemos uma língua que não inventamos, um chão que já estava pisado, uma memória que pulsa na carne. Devemos aos que vieram antes, aos que resistiram para que existíssemos; devemos também às cicatrizes coletivas, às feridas de injustiça que herdamos sem escolher. A dívida é lembrança de que ninguém é origem em si mesmo: somos trama, elo, consequência. Carregamos o peso e a graça de não estarmos sós. Por isso a dívida é também responsabilidade: reconhecer no outro a extensão do próprio ser. Não é fardo apenas, é vínculo que nos chama à reparação e ao cuidado.
A dádiva chega quando o tempo amadurece dentro de nós.
Todos envelhecemos, mas poucos amadurecem: muitos acumulam anos sem atravessar o deserto da dúvida, sem se reconhecer devedores, sem abrir espaço para o dom. A dádiva não é paga, não é moeda; é graça que se oferece quando se aprende a não calcular. A amizade que sustenta, a música que consola, a palavra que resgata — tudo isso é dádiva. É ela que nos devolve ao mundo não como donos, mas como hóspedes agradecidos. É a lição de que viver não é posse, é acolhimento.
Entre dúvida, dívida e dádiva se desenha a cartografia da existência.
São três margens que se entrelaçam: a dúvida nos humaniza porque nos recorda da precariedade; a dívida nos socializa porque nos inscreve no tempo da coletividade; a dádiva nos transcende porque nos abre ao que não se compra nem se mede. Quando recusamos a dúvida, caímos no dogma. Quando negamos a dívida, alimentamos a injustiça. Quando fechamos a mão para a dádiva, a vida se torna mero cálculo.
Maturidade é esta aprendizagem silenciosa: transformar a dúvida em abertura, a dívida em compromisso e a dádiva em gratidão. Não basta envelhecer — é preciso atravessar. Não basta somar dias — é preciso saber o que fazer com as feridas. Pois só quem duvida pode se reinventar, só quem reconhece a dívida pode se reconciliar com a história, só quem acolhe a dádiva pode florescer no intervalo breve que nos cabe.
E talvez seja nisso que se condense a travessia: aprender que a vida não se possui; apenas se atravessa, entre dúvidas que abrem, dívidas que ligam e dádivas que, por instantes, nos devolvem ao milagre do instante.
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