Mãos de um médico segurando uma lâmina de vidro com amostra para diagnóstico de câncer, sobre uma mesa branca iluminada

Câncer é a escrita sombria da vida, mas também o chamado para que ciência, cultura e afeto se unam no mesmo gesto de cuidado.”
— Giovani Miguez

a Antonio Tadeu Cheriff dos Santos*


Desde a “bile negra” dos antigos até a enunciação genética contemporânea, o século nomeou o indizível para poder tocá-lo. Assim foi e é com o câncer. Ao chamá-lo de “imperador”, como registra a narrativa de Mukherjee, erguemos uma corte de símbolos: poder, expansão, obediência do tecido ao decreto da célula rebelde. Ao declará-lo “guerra”, como critica Sontag, convocamos batalhas íntimas e públicas, alinhamos pacientes em trincheiras de discursos e submetemos o cuidado à lógica do vencedor e do vencido.

Ambas as metáforas iluminam e ferem: ajudam a ver, mas, ao mesmo tempo, ofuscam, porque já chegam com uma gramática de comando — e quem comanda a palavra, comanda o possível. Tomar o câncer apenas como objeto biológico e cultural é recusar o conforto das narrativas únicas. O que se chama doença ensaia, no corpo, um drama de escalas: célula, organismo, pessoa, mundo.

Três cenas sustentam, como veremos a seguir, esse palco — o corpo como hábitat, o corpo em hábito, o corpo como habitante —, e cada uma convoca saberes que não cabem em uma só disciplina.

O corpo como habitat

No corpo como hábitat, a ontogênese do organismo multicelular é o primeiro território. A arquitetura viva se sustenta em tensões — a “tensegridade” de Ingber, na qual microtúbulos e filamentos projetam forças, distribuem estabilidade, guardam a possibilidade do movimento.

Aqui, o câncer aparece como desordem de construção de nichos celulares: ambientes micro que alimentam a sobrevivência do que não coopera, circuitos de sinalização que, nutridos por pequenas vantagens evolutivas locais, escapam ao equilíbrio das regras do conjunto.

Palavras como “imperador” tornam-se sedutoras porque dão rosto político ao que é, em parte, uma economia íntima de matéria e energia. Mas basta chamar de império para que, sem querer, naturalizemos a tirania: se há coroa, há súditos; se há súditos, há obediências.

A metáfora, então, começa a legislar o diagnóstico.

O corpo em hábito

No corpo em hábito, a cena se alarga. O organismo, que antes se apresentou como cidade de células, revela que vive em cidades humanas: trabalha, come, respira, teme, ama — e nisso deposita, à sua revelia, inscrições ambientais.

A antropologia médica de Laín Entralgo ensina a ver a biografia como ecologia: dietas, exposições, ritmos de trabalho e descanso, desigualdades que não aparecem em lâminas, mas escrevem, de modo lento e eficaz, predisposições.

Câncer, aqui, não é apenas proliferação celular: é assinatura social. Chamar de “guerra” uma doença cuja gênese se associa à fome, ao ar poluído e aos turnos de 12 horas é deslocar para o indivíduo uma batalha que foi preparada por políticas e mercados.

Vence-se pouco quando se lutam as guerras erradas.

O corpo como habitante

Chega, então, o corpo como habitante — não apenas habitando a casa-organismo ou a cidade-hábito, mas um mundo em crise civilizatória, como alerta Echeverría.

O modo de produção do habitat planetário reconfigura riscos: monoculturas, petroquímica, desertificação, alimentações ultra-processadas, tempos acelerados que confundem cuidado com consumo.

A antropologia do câncer — em Surawy-Stepney, Caduff, Valadez-Blanco — mostra que o tumor também é linguagem do tempo histórico; produto e testemunha de nossas formas de vida. O nicho já não é só microambiental: é geopolítico.

O paciente, nesse último ato, é também cidadão ecológico: sua carne fala a língua do clima, da terra, dos resíduos, do trabalho.

Questionar as metáforas

Dizer que o câncer é “imperador” ou “guerra” simplifica, porque apaga essas três escalas. Sontag nos obriga a retirar os capacetes para ouvir o doente sem continência militar; Mukherjee nos recorda que a história da cura é feita de tentativas, derrotas e inesperadas descobertas, não de proclamações triunfais.

As antropologias do câncer acrescentam que cada terapia é também gesto civilizatório: aplica uma filosofia do corpo, uma economia de tempo e um pacto social sobre vulnerabilidades.

A hipótese que nos guia é a de que a metáfora, quando inquestionada, governa o cuidado; quando criticada, educa o olhar. Não se trata de abolir imagens — isso seria abolir a própria linguagem —, mas de iluminá-las para que não governem sozinhas.

O tumor é inseparável da biografia

O risco epistemológico está em acreditar que a construção de nichos seja invariável em todas as escalas, como se da célula ao planeta vigorasse a mesma matemática. Essa reificação naturaliza a doença, como se fosse destino, e dilui histórias singulares.

É preciso, ao contrário, reintroduzir historicidade e diferença subjetiva: o tumor que cresce num corpo é inseparável da biografia que esse corpo testemunha. Cuidado é método, mas também tradução: o clínico, o pesquisador, a família e a cidade traduzem sintomas em escolhas — e toda escolha é uma ética. Daí a exigência de uma abordagem transdisciplinar e qualitativa, não para substituir o rigor biomédico, mas para completar seu horizonte.

Cartografias narrativas podem recolher as metáforas com que o paciente nomeia sua dor e sua esperança; análises de discurso rastreiam como mídia e políticas públicas distribuem imagens bélicas ou imperiais; etnografias clínicas observam o encontro entre protocolos e pessoas, onde muitas vezes nasce a iatrogenia simbólica; estudos de ecologia histórica correlacionam padrões de adoecimento a modos de vida e produção.

Ao lado disso, a biologia celular e molecular segue afirmando o que é inegociável: a especificidade tumoral, as vias de sinalização, a heterogeneidade intratumoral, a medicina de precisão.

Este ensaio poético, mas também científico e filosófico propõe, então, uma costura: onde a lâmina vê células, o texto escuta biografias; onde a estatística vê curvas, a literatura vê destinos; e uma não invalida a outra — ambas ampliam o real.

O cerne do problema

Para guiar a investigação, um fio: o problema não é apenas tratar tumores, é tratar metáforas. A pergunta: como as imagens públicas do câncer organizam práticas privadas de cuidado e decisões coletivas de saúde?

A hipótese de trabalho: metáforas bélicas e imperiais, por sua performatividade, tendem a estigmatizar e simplificar; já metáforas relacionais — as do tecido, da cidade, do jardim, do cuidado — favorecem práticas de escuta, corresponsabilidade e políticas sensíveis à desigualdade.

A justificativa é dupla: social, porque desarma estigmas e redistribui a culpa; científica, porque abre pistas de pesquisa qualitativa e integra achados biomédicos a contextos de vida; cultural, porque interroga os mitos contemporâneos, revelando onde a linguagem cura e onde fere.

Em busca de resposta científico-poética

Uma proposta de percurso emerge, não como lista burocrática, mas como andamento: primeiro, recolher o léxico corrente — nas páginas dos jornais, nos consultórios, nos lares —, distinguindo imagens que humanizam daquelas que humilham; depois, reconstituir a genealogia histórica dessas imagens, acompanhando, com Mukherjee, o caminho que vai da humoralidade aos genes, e, com Sontag, a crítica que denuncia a violência simbólica; a seguir, atravessar o campo antropológico, onde o corpo-hábitat encontra a microfísica da célula, o corpo-em-hábito expõe o trabalho e a comida, e o corpo-habitante revela o planeta; por fim, devolver ao cuidado práticas modeladas por essa travessia: consentimentos informados que falem a língua do paciente, comunicação clínica que não o aliste em batalhas involuntárias, políticas de prevenção que enfrentem determinantes sociais e ambientais, não apenas condutas individuais.

O objetivo — dito em linguagem de edital, mas guardando o ritmo do ensaio — é compreender como metáforas, narrativas históricas e abordagens antropológicas moldam a experiência do câncer, para propor um cuidado mais humano e uma pesquisa mais inteira.

No caminho, perseguem-se desdobramentos concretos:

  1. análise das metáforas dominantes e de seus efeitos no imaginário social e na adesão terapêutica;
  2. articulação crítica entre a história do câncer e a crítica das imagens, enfatizando tensões entre memória, ciência e cultura;
  3. integração de perspectivas antropológicas por meio das três cenas de escala, reconhecendo determinantes sociais e civilizatórios;
  4. desenho de um modelo qualitativo de investigação e intervenção que una biologia, clínica, antropologia, literatura e políticas públicas.

Em última instância, esta proposta afirma que não há cuidado sem gramática. Palavras são instrumentos: abrem ou fecham, ferem ou suturam. A clínica que chama “guerra” pode, sem desejar, recrutar culpas e silêncios; a política que vê “imperadores” pode, sem saber, legitimar fatalismos.

A língua do cuidado no horizonte

É preciso, portanto, escolher a língua do cuidado. Uma língua que reconheça o tumor como matéria — e por isso o enfrente com ciência —, mas também como discurso — e por isso o escute com humanidade.

O rigor do laboratório e a delicadeza da escuta não são alternativas: são duas mãos do mesmo gesto. Se o câncer habita a pessoa, a cidade e o planeta, o cuidado, para alcançá-lo, precisa habitar a biologia, a cultura e o tempo.

Não há epílogos para quem está em tratamento, há percursos. E neles cada metáfora precisa prestar contas: serviu para aliviar ou para oprimir? Ampliou a responsabilidade pública ou a despejou nos ombros privados? 

Ao final, um compromisso: fazer da pesquisa uma clínica das palavras e das práticas; fazer do poema um instrumento de crítica; fazer da política de saúde uma arquitetura de nichos onde a vida — tensa, frágil, possível — encontre margem para persistir. Porque, entre o imperador e a guerra, há uma cidade de vozes; e é nela que o cuidado pode, enfim, aprender a falar.

@giovanimiguez

__

* Este ensaio, apesar de poético, nasce de um longo tempo de reflexão científica e filosófica partilhada com meu parceiro de elucubrações, o enfermeiro Antônio Tadeu Cheriff dos Santos, doutor em Filosofia, que me honrou com sua co-orientação no mestrado e no doutorado. com quem tenho tido ao longo dos últimos dez anos incontáveis trocas. A ele agradeço e dedico este ensaio, pois sem ele eu não teria me permitido esta caminhada.

Compartilhe este artigo

POESIA TAMBÉM É CUIDADO!

Fale comigo para adquirir livros, contratar oficinas ou palestras sobre leitura, poesia e biblioterapia.

MAIS SOBRE MIM
Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em gestão pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

Posts Recomendados