O registro da enfermidade não se restringe, obviamente, à anamnese. Pode ser feito de outras maneiras, inclusive através de um texto literário, como aconteceu com muitos poetas e escritores enfermos. A comparação entre tal tipo de texto e a anamnese ilustra as diferenças entre "as duas culturas", mas também evidencia a existência de um território comum, partilhado, que pode se revelar um fértil campo de experiência humana e científica. — Moacyr Scliar *
Primeiras palavras
Quando não estou vivendo minha vida de poeta — o que, ultimamente, é quase o tempo todo — eu trabalho no Instituto Nacional de Câncer (INCA), na área de ensino. Lá, nos últimos 14 anos, um pouco mais, tive a oportunidade de conviver com uma equipe multidisciplinar incrível, de médicos a enfermeiros, assistentes sociais, fisioterapeutas, psicólogos, fonoaudiólogos, nutricionistas, farmacêuticos, técnicos e tecnólogos, e até pedagogos, biólogos e biomédicos. A maioria deles com mestrado e doutorado. Aprendo todos os dias com vasta experiência nas discussões sobre prevenção e controle do câncer.
Mesmo não sendo da área da saúde, acabei absorvendo muito desse conhecimento. Essas discussões foram fundamentais para a minha formação na área de Ciência da Informação, onde fiz meu mestrado e doutorado. Especialmente a biblioterapia, um tema que se conecta diretamente com a minha paixão pela poesia e que, por isso, tem se tornado cada vez mais presente na minha rotina.
É por essa vivência e pelas reflexões e pesquisas que dela derivam que escrevo este ensaio.
Duas medicinas que precisam se abraçar
A medicina que aprendi a admirar — aquela dos olhos nos olhos, do tempo sentado ao lado do leito, do gesto comedido que pergunta antes de prescrever — foi sendo empurrada para o fundo da sala pelas máquinas que brilham.
Na oncologia, esse brilho é incontestável: cirurgias mais precisas, terapias-alvo, imunoterapia, sobrevidas que se alongam. Mas há um custo silencioso nesse triunfo técnico: o adoecer virou protocolo e o paciente, um conjunto de valores laboratoriais. Esse é o paradoxo do nosso tempo.
Não é nostalgia: é memória do essencial. A boa medicina sempre foi feita de ciência e história de vida. Quando um desses pilares se agiganta, o outro definha — e o cuidado se desumaniza.
A Medicina Baseada em Evidências (MBE) veio corrigir arbitrariedades e amparar decisões com dados robustos. Louvável e necessária. Mas, hipertrofiada, reduz o doente à doença, a disease que cabe nos gráficos, deixando de lado a illness, a experiência vivida, aquilo que não aparece na lâmina nem na tomografia. É aqui que a Medicina Baseada em Narrativas (MBN) — formalizada por Rita Charon — não entra como moda acadêmica, mas como retorno ao óbvio esquecido: sem escuta, não há cuidado.
Sem escuta, sem cuidado
Atenção, representação e afiliação não são neologismos; são nomes novos para práticas antigas. Atenção é a escuta inteira que reconhece também o silêncio; representação é o exercício de transformar o que se ouviu em linguagem — às vezes num “prontuário paralelo” — para que o profissional se dê conta do encontro; afiliação é a aliança que nasce desse ritual de reciprocidade.
A ética do cuidado e a fenomenologia apenas dão lastro filosófico ao que as avós sabiam: ninguém sara sozinho, e a cura começa quando alguém nos chama pelo nome. A linguagem não é adorno do tratamento; é parte do tratamento.
O câncer que descrevemos molda o câncer que vivemos. A metáfora bélica — “luta”, “guerra”, “herói” — serviu a um tempo, mas cobra caro. Quem piora, se culpa por “não ter lutado o suficiente”; quem precisa de cuidado paliativo, é percebido como alguém que “desistiu”. Mudam-se as palavras, mudam-se os mundos possíveis. Ao lado das metáforas, as formas de narrar.
Reposicionando metáforas
Arthur Frank mostrou que as pessoas adoecem também por histórias: a narrativa de restituição (voltar ao que era), a narrativa do caos (quando nem a frase se sustenta), a narrativa de busca (quando o sentido se desloca e reaparece adiante). Saber em que história o paciente respira é, por si, uma ferramenta clínica. Nenhuma ressonância magnética alcança essa cartografia; mas o diálogo alcança.
É nesse chão que a biblioterapia deixa de ser “atividade cultural” para se tornar práxis clínica do cuidado narrativo. O velho mecanismo é conhecido: identificação, catarse, insight. Ao reconhecer-se num personagem, o paciente rompe o isolamento; ao chorar com a trama, escoa o que fica represado na consulta breve; ao entrever, numa frase, outra maneira de estar no mundo, ganha repertório para o dia seguinte.
Em oncologia, isso toca a “dor total”: física, psíquica, social, espiritual. Um grupo de leitura bem conduzido é antídoto contra a solidão; um poema lido na hora certa dá voz ao indizível; um conto partilhado reorganiza o caos em esboço de busca.
E não apenas para o paciente. A cultura do “profissional invulnerável” adoece quem cuida. Humanidades médicas — e aqui incluo MBN e biblioterapia — não são luxo, são higiene emocional de equipe. Sem isso, o burnout deixa de ser risco e vira regra.
Reflexões sobre o método
“Mas cadê as evidências?”, perguntam alguns.
A pergunta é legítima e não pode ser descartada com romance. Contudo, convém humildade epistemológica: há intervenções dialógicas, complexas, sensíveis ao contexto, que não se deixam medir apenas por desenhos experimentais clássicos.
É possível — e desejável — combinar métodos: desfechos quantitativos para o que se mede, análise qualitativa para o que se entende. Entre uma curva e um testemunho há uma ponte: é por ela que atravessamos do dado ao sentido. Experiências que já existem no país — em hospitais, universidades, projetos de extensão — mostram viabilidade e benefício. Não são anedotas; são sementes. Cabe cultivá-las com desenho de pesquisa melhor, sem reduzir a florescência ao vaso do mensurável.
Caminhos e soluções possíveis
Se o diagnóstico está claro, o tratamento também precisa estar: formar para a escuta, institucionalizar a prática, financiar o que dá resultado humano.
- Currículos de saúde devem devolver tempo e método à relação clínica, treinando a escrita reflexiva, a entrevista que pergunta por metáforas, a capacidade de mapear em que narrativa cada paciente se encontra.
- Serviços precisam operar em equipes de fato interdisciplinares — incluir bibliotecários, psicólogos, assistentes sociais, capelães — porque o sofrimento é plural.
- O prontuário eletrônico pode e deve abrigar, de forma responsável, um campo para a história de vida, para metas de cuidado narradas pelo próprio paciente, para a linguagem que ele escolhe para si. Por que não adotar um "prontuário narrativo"?
- A pesquisa deve abraçar métodos mistos e, em cuidados paliativos, reconhecer que o que importa nem sempre cabe em centímetros de tumor.
- E as políticas públicas — no âmbito do SUS — precisam garantir estrutura e continuidade para que biblioterapia e cuidado narrativo não sejam iniciativas heroicas, mas rotina qualificada.
Considerações finais
Não se trata de opor ciência e literatura, máquina e palavra. Trata-se de reconduzi-las ao seu lugar antigo: lado a lado. Toda grande tradição é, no fundo, uma boa memória do que funciona. Sabemos, há séculos, que um diagnóstico preciso salva vidas; sabemos, há milênios, que uma boa história as sustenta.
A oncologia que precisamos é essa síntese: rigor sem dureza, tecnologia com tato, protocolo que começa com o nome do paciente, não com o CID. Nenhuma bomba de infusão substitui uma conversa que nos devolve ao mundo.
É tempo de recolocar a cadeira ao lado do leito, abrir o livro, perguntar com sinceridade e registrar com pudor. A cura nem sempre é possível; o cuidado, sempre. E cuidar, antes de mais nada, é dar à pessoa doente a chance de contar, com suas próprias palavras, a história que deseja viver.
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