Pessoa sentada lendo livro durante sessão de biblioterapia em ambiente calmo e acolhedor com plantas e iluminação suave


Em um mundo onde tudo corre, onde telas e relógios se disputam em velocidade, cuidar de si tornou-se quase uma arte perdida. Mas há um gesto que resiste: abrir um livro, deixar que as palavras caiam sobre nós como uma chuva calma depois da tormenta. A leitura terapêutica não é novidade, ainda que muitos a tratem como descoberta recente. Ela vem de longe, atravessa séculos, desde as antigas bibliotecas do Egito até as rodas de leitura de hoje. O que muda são as roupas; o que permanece é a essência: a palavra como lugar de cura, como casa para a alma cansada.

Não é preciso nomeá-la sempre como biblioterapia, embora esta seja sua forma mais estruturada, com profissionais que escolhem textos e acompanham processos. Basta pensar que ler com propósito já é uma forma de se reencontrar. Talvez você já tenha vivido isso sem se dar conta: abrir um poema e sentir que ele falava de sua dor mais íntima; atravessar um romance e sair de lá menos só; rir diante de uma crônica e sentir a vida menos pesada.

Ler é construir espelhos e janelas. Espelhos, porque reconhecemos em personagens ou versos as nossas próprias falhas, cicatrizes e alegrias. Janelas, porque a vida dos outros se abre diante de nós, lembrando que o mundo é mais vasto que a repetição dos dias. E nesse jogo de reflexos, algo se acomoda dentro de nós: a respiração encontra ritmo, o coração descansa, a mente se reorganiza.

Quem lê por cuidado experimenta benefícios que a ciência já reconheceu: menos ansiedade, menos solidão, mais confiança, mais empatia. Mas é na vida miúda que isso se mostra. É no adolescente que, ao se ver narrado, descobre que não está sozinho. É na criança que adormece em paz depois de ouvir uma história. É no idoso que reencontra alegria ao partilhar lembranças despertas por um poema. É no paciente hospitalizado que, ao ler, sente menos dor, menos espera, mais humanidade.

O texto certo pode ser um bálsamo. Para o luto, histórias de despedida e recomeço. Para a ansiedade, narrativas acolhedoras e serenas. Para a autoestima, biografias que lembram que a queda não é o fim. Para vínculos, livros que celebram o coletivo. Não há fórmula pronta: cada pessoa encontra sua chave no livro que, de repente, lhe abre a fechadura.

O mediador, quando existe, é guardião de escuta. Não se trata de conduzir como quem dita um caminho, mas de abrir espaço para que cada leitor se encontre em sua própria jornada. O mediador sabe que há livros que curam, mas também há livros que ferem, que podem tocar em feridas ainda abertas. Por isso, é preciso cuidado. A leitura não substitui terapia nem tratamento médico, mas pode caminhar junto, como companhia silenciosa que oferece força quando o chão vacila.

Começar é simples. Escolher um livro, um canto silencioso, um caderno para anotar impressões. O início pede coragem, porque abrir-se às palavras é também abrir-se a si. Depois, basta se deixar levar: o texto trabalha em silêncio, como um rio subterrâneo que, pouco a pouco, muda a paisagem.

A leitura terapêutica não é apenas prática clínica ou pedagógica. É filosofia vivida. Somos feitos de narrativas: cada lembrança é uma página, cada encontro é um capítulo, cada perda é uma dobra. Quando lemos, ressignificamos o enredo; quando partilhamos leituras, escrevemos coletivamente uma nova biografia.

Ler é exatamente isso: reinventar-se diante da vida, ampliar a normatividade da existência, descobrir que há sempre uma nova página por vir. Sontag lembrava que precisamos de metáforas menos bélicas para o sofrimento. A leitura oferece essas metáforas: uma dor pode ser pedra, mas também pode ser rio; uma doença pode ser muro, mas também jardim a ser cuidado.

No fim, ler é um ato de resistência contra a pressa e contra o vazio. É política da delicadeza. É cuidado que se faz em silêncio, mas reverbera alto na maneira como nos relacionamos. Um livro pode não mudar o mundo, mas pode mudar a forma como o habitamos. E isso já é revolução suficiente.

Assim, em meio ao ruído, a leitura se torna abrigo. Em meio ao cansaço, torna-se respiro. Em meio à solidão, torna-se companhia. E talvez não haja maior cuidado do que esse: abrir um livro e, ao fazê-lo, abrir-se ao mundo e a si mesmo. Ler, afinal, é curar devagar — com palavras, com presenças, com a coragem de permanecer humano.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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