Havia um tempo em que os apóstolos caminhavam pelas ruas poeirentas de Jerusalém e o milagre não era a cura de corpos, mas a cura da posse. Ninguém dizia “isto é meu”, porque tudo era nosso. As terras eram vendidas, as casas entregues, e o dinheiro, depositado aos pés dos apóstolos, voltava para a mesa em forma de pão. Não havia necessitado entre eles. A cada um se dava conforme a sua necessidade.
Essa cena bíblica parece distante, quase irreal aos nossos olhos acostumados com muros, senhas e trancas. Mas ela ecoa, surpreendentemente, em outro tempo, em outro idioma. Marx, na frieza de uma crítica ao Programa de Gotha, escreveu: de cada um conforme suas capacidades, a cada um conforme suas necessidades. A mesma frase, o mesmo espírito — ainda que em linguagem secular, sem milagres, sem altares.
O que une Atos dos Apóstolos e Marx não é a fé, nem a ideologia, mas a convicção de que a dignidade não se mede em moedas. O critério não é o mérito, nem o poder, mas a necessidade. Essa palavra simples, que carrega em si a urgência da vida, deveria ser o coração da política.
E no entanto, vivemos num tempo em que a meritocracia é dogma e a competição virou liturgia. Talvez por isso o versículo de Atos soe mais como profecia do que como memória. Quando o SUS atende não pelo bolso, mas pela necessidade, quando programas de renda mínima tentam garantir o básico, é o mesmo sopro antigo que ressurge: partir para que sobre.
Caminho pela cidade e sinto a contradição em cada esquina. Sob a marquise, corpos encolhidos no frio — cobertores gastos, sacolas como travesseiros. Nas vitrines iluminadas, o excesso reluz como promessa inalcançável. No cruzamento, voluntários (verdadeiros cristãos, talvez) oferecem sopa em copos de isopor, enquanto carros de luxo aceleram impacientes no sinal vermelho. O cheiro do pão fresco das padarias mistura-se ao odor ácido do lixo acumulado. Entre buzinas e passos apressados, ouço ainda o sussurro antigo: não havia necessitado entre eles.
Que evangelho é esse que esquecemos, que revolução é essa que adiamos? Talvez a poesia insista em me lembrar que só haverá futuro quando o pão, simples e redondo, for de todos. Pois a vida — esta que se escoa pelas ruas — só floresce quando repartida.
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