Poetas contemporâneos lendo poesias em um encontro literário ao ar livre em área urbana com grafites coloridos ao fundo


No Brasil de agora, a poesia é uma casa viva. Não tem dono nem fechadura. Cada parede se ergue da voz que chega, cada janela se abre para um horizonte novo. A poesia é abrigo coletivo: nela cabem as dores herdadas, as lutas recentes, os afetos inesperados.

Nunca se escreveu tanto e de tantos lugares. Cordéis digitais correm como rios elétricos, saraus periféricos iluminam becos, livros artesanais devolvem à palavra o peso da matéria, versos viralizados disputam espaço com as notícias e os memes que escorrem pelas telas. É como se a língua tivesse se incendiado e, em vez de cinza, deixasse sementes.

A herança modernista ainda respira nesses gestos. A liberdade formal, a desconstrução da sintaxe, o atrevimento de misturar vozes — tudo retorna como memória viva. Mas agora não mais nos salões fechados. São jovens poetas em slams de rua, corpos inteiros declamando contra o silêncio, vozes ancestrais retomando o que lhes foi negado. O modernismo já não é apenas um marco: é sangue que circula, atravessando séculos e chegando, renovado, às periferias, às aldeias, às redes sociais.

Quem escreve hoje vem de muitos territórios. Favelas, quilombos, universidades, prisões, escolas, aldeias, ruas, coletivos digitais. Poetas que escrevem para sobreviver, para denunciar, para lembrar, para cantar. Ali se misturam relatos de violência e sobrevivência, afirmações de identidade negra, indígena, trans, feminina, periférica. Ali se transforma o cotidiano em revelação: o café coado, o ônibus lotado, o varal de roupas se tornam matéria de poema. É a palavra dizendo o indizível, expondo a ferida, celebrando a cicatriz, reinventando a esperança.

Temas não faltam. O cotidiano que se abre em epifania. O amor que se refaz em tempos líquidos, múltiplos, digitais. A política que pulsa como grito, como denúncia, como desejo de transformação. A identidade que se afirma no corpo, no pertencimento, na língua. A tecnologia que acelera e sufoca, mas que também dá palco para a resistência. O poema hoje é sempre costura entre extremos: alegria e dor, abandono e afeto, denúncia e utopia.

E o mapa se deslocou. O centro já não é o único lugar de fala. A poesia nasce nas bordas e das bordas se expande. Nas vielas, nas feiras, nos quilombos, nas redes, no improviso das praças. Vozes antes invisíveis se tornaram centrais. É ali que a literatura se reinventa, desobedecendo fronteiras. É ali que se funda outro cânone, não escrito em mármore, mas em pele viva.

Nem todo poema se imprime em papel. Muitos respiram em vídeo, em post, em áudio, em podcast, em fanzine artesanal. O slam devolve à poesia sua vocação oral, memória de griôs e cantadores. A poesia digital se encontra com algoritmos, mas ainda é feita de encontros imprevisíveis. A produção artesanal insiste em costurar páginas como quem insiste em manter viva a delicadeza. O poema, de qualquer forma, segue sendo uma ponte: entre solidão e presença, entre corpo e palavra, entre silêncio e mundo.

Ler poesia é também um ato de cuidado. Em oficinas e rodas de leitura, já vi versos abrirem frestas para a respiração, ajudarem a reorganizar memórias, atravessar dores, costurar afetos. O poema não cura como remédio, mas reorienta como bússola. Ele nos ensina a desacelerar, a nomear o que ainda não sabíamos sentir, a transformar silêncio em gesto.

E porque vivemos tempos de intolerância e violência, poesia é também resistência. Quando uma poeta negra declama, ela desobedece ao apagamento histórico. Quando um indígena publica seus cantos, devolve dignidade à terra. Quando um corpo trans escreve, inaugura um espaço de existência. Cada poema é arma simbólica, mas também é escuta. Resistir é ouvir, acolher, aprender a ser com o outro.

No meio da sobrecarga informacional, o poema é abrigo. Entre notificações e dados incessantes, ele nos devolve ao ritmo da respiração. Versos são convites à pausa. São perguntas que se recusam a ser soterradas pela pressa: o que importa? O que permanece? Quem somos nesse turbilhão? Ler poesia é insistir em existir de outro modo, menos veloz, mais presente.

O ato poético, hoje, é movimento contínuo. Não aceita prisão em cânones, não se submete a prateleiras. Vive no entre: tradição e invenção, memória e novidade, corpo e palavra. Cada verso lançado é convite a uma nova escuta, uma nova maneira de habitar o tempo.

A poesia brasileira de agora é plural, insurgente, luminosa. É uma casa viva. Quem nela entra descobre não apenas palavras, mas mundos possíveis. Talvez seja essa a sua grande força: multiplicar encontros, acender sonhos, lembrar que ainda podemos imaginar futuro.

Um poema, mesmo pequeno, pode ser grande o bastante para abrigar a vida inteira.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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