“A alegria acende as janelas; a melancolia move as cortinas. O poeta habita as duas e aprende a abrir a casa para o vento.”
- Giovani Miguez
Há quem pergunte se os poetas são felizes, como se a vida coubesse em um selo. A pergunta é outra: como um poeta navega? O poeta não mira um porto fixo, ele aprende correntes. Há dias de água clara, há dias de lama densa. Entre um e outro, uma rota se desenha no corpo como quem risca mapa em pele. A felicidade não é chegada, a melancolia não é ruína. São marés. E o poeta, esse habitante de águas, conhece os riscos do raso e a paciência do fundo.
Poesia, desde o seu nome, é fazer. Não um fazer útil, desses que medem eficiência, mas o fazer que dá forma ao informe. O mundo chega barulhento e o poema organiza o ruído em cadência respirável. O poeta não escreve apesar da dor. Escreve porque há uma dor que quer linguagem. É assim que se abre passagem no labirinto. Uma imagem de cada vez, o caos encontra prateleiras, e o pranto, uma tigela onde não transborde.
Aristóteles sussurra do fundo do tempo que a poesia fala do que poderia acontecer. A história cola ao que já foi, a poesia arrisca o que pode vir. Talvez por isso doa tanto. Para criar verossimilhança é preciso uma sensibilidade que roça a carne. A mão que acende imagem também se queima. A mesma antena que capta a alegria aguda capta, com a mesma nitidez, a sombra que insiste em passar pelo corredor. Ser poeta é habitar a casa inteira, não só a sala de visitas.
A melancolia, que muitos pareciam descobrir no romantismo, é mais antiga que o bocejo da tarde. Os antigos a chamaram de bile negra e a viram colada ao gênio de heróis, filósofos e artistas. O diagnóstico soava mítico, mas acertava no centro: há um peso no olhar que, quando bem contido, vira delicadeza. A ciência moderna vestiu esse pressentimento com dados, quadros, curvas. Descobriu correlações, listou riscos, anotou nomes. E nós, que escrevemos, reconhecemos em silêncio: sim, há uma proximidade perigosa entre criar e sofrer. A lâmina que recorta imagem também pode ferir a mão.
Nada disso romantiza a dor. Ao contrário. O poema não é licença para o abismo, é trilho para atravessá-lo. Não há glamour nos quartos escuros. O que existe é trabalho, atenção, ritmo e silêncio. Um verso pede outro, e entre eles o ar que permite seguir. No caderno, a melancolia vira matéria maleável. Não some. Ganha bordas. Fica mais leve de carregar quando tem nome. A felicidade, quando chega, também se faz obra. Não explode, amadurece. Aprende a não se envergonhar da própria brevidade.
Os poetas vivem num regime de fronteira. Ao mesmo tempo em que caminham com os outros, guardam uma escuta voltada para dentro. É esse ouvido interno que compõe a música do que escapa. Às vezes exagera. Às vezes se afina de modo raro. Há o risco do excesso de si, a tentação de confundir profundidade com mergulho sem volta. Há também a graça da superfície, quando descobrimos que um copo sobre a mesa é mundo suficiente. O ofício é medir alturas, não para fixá-las, mas para não se perder nelas.
A felicidade, para quem escreve, raramente é espetáculo. É arrumação simples. O café que acerta a temperatura, a luz que encosta na lombada do livro, a respiração que encontra compasso. A melancolia, quando chega, fala baixo. Pede que a casa seja habitada com cuidado. Há dias em que as palavras se recolhem e tudo o que resta é varrer o chão, regar a planta, abrir a janela. O poema virá quando vier. O poeta aprende a não forçar visita. Aprende a deixar a cadeira vazia à mesa, como quem prepara lugar para um amigo que pode chegar sem avisar.
Não é fuga do mundo. É presença. O poeta desce à rua, paga contas, erra, se atrasa. E, enquanto isso, anota uma frase no bolso. Um velho que conversa com o cachorro. O riso de duas meninas que dividem um segredo. A chuva que encosta no toldo como se pedisse abrigo. Tudo é matéria quando visto com delicadeza. Nem tudo vira verso. Mas tudo pode afinar o instrumento que dará sentido ao navegar do poeta.
Há quem confunda tristeza com profundidade. Não é. Tristeza pode ser apenas peso. Profundidade é outra coisa: é alcance. É tocar o que está abaixo do óbvio sem romper o fio que nos liga aos outros. Por isso a alegria importa. Não a alegria gritante, mas a que sabe durar o necessário. A alegria é um método de respiro. É ela que lembra ao poema que a realidade não é apenas ferida, é também cicatriz bem cuidada. É ela que impede a melancolia de fundar impérios.
Também não se trata de negar a sombra. Sem ela, tudo fica plano. O poeta aprende a acender abajures, não holofotes. Luz suficiente para ver a mão, para reconhecer o rosto. O resto pode ficar em meia-luz. Ali, onde não sabemos tudo, a linguagem trabalha melhor. A palavra não pretende dominar, pretende aproximar. Quando o verso aceita não explicar, ele acompanha. Às vezes isso basta.
E quando a dor passa do limite, quando o corpo pede ajuda que o poema não dá, o poeta também aprende a dizer sim ao mundo fora da página. Amigos, profissionais, rotinas. O cuidado é um trabalho coletivo. Não há vergonha em pedir amparo. A coragem maior, muitas vezes, está em aceitar o colo. Em descansar. Em não transformar sofrimento em identidade.
O que fica, ao fim, é a navegação. Um mapa sem linhas retas, com ilhas pequenas, com boias improvisadas. A poesia serve como bússola que aponta para algo que não é norte fixo, mas direção possível. E, nesse ir e vir, o poeta descobre uma espécie de felicidade que não teme a melancolia porque não depende de expulsá-la. É uma felicidade que cabe junto, que aprende convívio, que organiza a casa para visitas diferentes.
Talvez, então, a pergunta inicial possa ganhar outra forma. Em vez de querer saber se os poetas são felizes, perguntemos como eles sustentam o dia. Com que palavras amarram o barco. Com que gestos desatam nós. Em que prateleira guardam a noite para que ela não invada a manhã. A resposta, sendo sincera, será sempre imperfeita. Alguns dirão que foram salvos por um verso. Outros dirão que escrever foi o que restou quando tudo o mais se desfazia. Haverá quem cale. Tudo isso é verdadeiro.
Eu, que falo daqui, digo apenas que o poema é uma casa possível. Nem sempre chega pronta. Muitas vezes é apenas um quarto com uma cadeira e um copo de água. Às vezes é um terraço onde se vê o mar. Em dias bons, é um lar onde a alegria senta e a melancolia, por um momento, aceita dividir o silêncio. O resto é rotina de quem cuida. Abrir a janela, varrer o chão, deixar a luz acesa. E, quando a noite vier, lembrar que o vento move as cortinas. Que tudo passa. Que o barco resiste. Que amanhã, se houver manhã, estaremos outra vez aprendendo a navegar.