Homem sentado em cadeira de madeira antiga, olhando para janela com luz suave ao entardecer

"Aprendi que a poesia é menos um refúgio e mais uma forma de permanecer atento ao que me atravessa e ao que atravessa o mundo."


Este diário poético nasceu - aliás, ainda está nascendo, sendo construído entre sopros e silêncios - um poema por vez, ao longo deste ano de 2025. Assumi, desde o prefácio provisório, o ofício de poeta-cartógrafo, de documentalista. Foi o que busquei praticar: um mapeamento de afetos, ruínas e pequenas claridades. O pacto, firmado comigo e com quem me lê, foi simples: a poesia, em voz baixa, como um modo de existir, de testemunhar e de cuidar. A intenção era manter os pés no cotidiano e os olhos atentos às engrenagens que nos atravessam. Nesse percurso, fui alternando abrigo e lâmina, flor e cicatriz. A voz, percebo agora, foi se transformando ao longo dos meses.

O caminho começou em janeiro, pelo mais próximo. "MANHÃ SONORA" foi um registro do frescor do amanhecer, enquanto "COMOÇÃO" e "PRAZER NOTURNO" abordaram a solidão sem melodrama, aceitando os dias em que o afeto não vem fácil. "ANDANTE" tornou-se um lembrete de que caminhar já é uma forma de resistir. A cidade, em "SUSPENSO", revelou sua própria linguagem no lixo, no ruído e no silêncio inaudível, entreabrindo a porta para o social.

Essa porta se abriu de vez em fevereiro. Se "MANIFESTO" e "JOGO SUJO" tomaram posição, "SEDENTOS" encarou a indiferença diante de corpos pretos no chão. Ao mesmo tempo, o terno e o humilde persistiam: a lealdade de um cão no rio, o isolamento de um "IGLU", a alegria de um pássaro na copa de uma árvore. Percebi ali que era possível alternar a atenção ao mínimo e a crítica ao mundo sem perder o fio da meada.

Em março, o social ganhou corpo e urgência. A invisibilidade dos trabalhadores diante de uma obra suntuosa tomou forma em "CONSTRUÇÃO". "DEPOIS DA FOLIA" serviu como um lembrete de que a ressaca não devolve a normalidade quando há um temporal maior, movido pelo capital. Até uma cena doméstica, em "FLORES DE SACADA", me ajudou a pensar sobre como o excesso sufoca; e como o cuidado, sem medida, também pode afogar. Essa densidade temática pediu um ajuste na forma. Experimentei o rigor do soneto em "SONETO AOS CÍNICOS" para dialogar com o risco de nos fecharmos à humanidade. Conversei com Cecília Meireles em "ENTRE AFETOS", preferindo a luz difusa à certeza. Em Teresópolis, "O SOM DO SILÊNCIO" se revelou um exercício de presença. Fui entendendo que podia transitar do epigrama ao soneto, do sussurro à afirmação, sem perder a coerência.

Os meses de maio e junho me levaram a um mergulho no próprio motor da escrita. "PENSAMENTO MATINAL" confessou algo íntimo: um dia que amanhece sem poema me torna indisponível para o mundo. "ANTES DO POÉTICO" admitiu o lodo que precede o verso. "PEDRA LANÇADA" foi uma lição sobre projeção, sobre como o brilho muitas vezes pertence mais ao nosso olhar do que à coisa olhada. Intercalei conselhos práticos e constatações duras. "DEIXE FLUIR" tornou-se um mantra contra o excesso de controle, enquanto "O MUNDO SEGUE" era um lembrete da nossa finitude. Escrevi "MEDICADO" de dentro do cansaço, mas encontrei novo fôlego em "NOVAS NOITES", com a queda de velhas normas. Na forma, o verso se esticou e se contraiu conforme a necessidade. A aldravia surgiu como um estalo e a escrita se alongou em poemas narrativos como "TRILHAR" e "QUEM SABE, UM LAR". O critério era um só: deixar que o poema encontrasse seu próprio tamanho, reforçando que escrever diariamente é ofício e, também, autocuidado.

O percurso se afunilou em julho e agosto, meses de síntese e confronto. Explicitei meu projeto em "ANAMNESE": sou um animal poético que depende do exercício diário para existir e para poder perguntar. Aproximei filosofia e poesia, traduzindo o conceito de "O HOMO SACER" de Agamben em imagens sobre a vida exposta e a exclusão. Agosto me forçou a encarar a guerra de frente. "ENTRE SIRENES E SILÊNCIOS" nasceu do susto de uma madrugada, desdobrando-se em microcontos e poemas sobre Gaza. "ROMÃ" transformou-se em símbolo: a semente como nome, casa e riso interrompido. A intenção não era competir com a notícia, mas humanizar o que a manchete não alcança, mantendo acesa a pequena chama da memória. Em paralelo, ampliei a crítica à nossa época em "TRÍPTICO DO CAOS", um poema em três atos sobre a cultura acelerada, a crise da subjetividade e o colapso da realidade. Para respirar, retornei ao jogo de luz e sombra, lembrando, com Clarice, que o cinza também ilumina. O ciclo se encerrou com "SEMENTE CORROMPIDA", um alerta sobre a infância exposta à perversidade das telas, um último esforço não para gritar, mas para nomear e defender.

Olhando em retrospecto, vejo que o grande movimento deste percurso foi a passagem do íntimo ao público, sem que um abandonasse o outro. Comecei com a manhã e a mesa de casa; terminei com a guerra, a aceleração digital e a ética do cuidado. No caminho, a forma se ajustou à função: o soneto quando precisei de rigor, a aldravia quando bastou o estalo, o verso longo quando a cena pediu fôlego. Mantive a ideia simples que me guiou desde o início: abrir frestas para o real e sustentar, com honestidade, o pacto de que poesia é trabalho de atenção. Não escrevi para vencer debates, mas para não me ausentar.

Se estes poemas servirem para que alguém, em algum lugar, em algum dia, possa respirar um pouco melhor, eles já terão cumprido seu papel.

Por hora, são poemas de gaveta. Alguns salpicados aqui neste imenso oceanos de links.

Entre sopros e silêncios, eu sigo.

@giovanimiguez

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MAIS SOBRE MIM
Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em gestão pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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