Barco solitário navegando em mar calmo sob céu estrelado e noite tranquila


Há rios que não correm para o mar. Nascem e desaguam dentro de paredes, sob uma iluminação perpétua que não conhece dia ou noite, apenas a vigília. Seu ar tem o sabor asséptico do cuidado e da urgência. O corredor de um hospital é um desses rios.

Um longo, silencioso e incessante rio de destinos.

Seu leito não é de pedra, mas de um piso polido, espelho d'água turvo que reflete pés que correm e rodas que se arrastam. Ele guarda a memória de todos os passos, as marcas dos freios, as gotas de soro que um dia secaram. É um leito de memória gasta, onde se espelham rostos que não ousam encarar o próprio reflexo. As margens são paredes pálidas, cuja pele de tinta às vezes descasca, testemunhas mudas pontuadas por portas fechadas. Cada porta é um afluente silencioso, uma enseada particular onde uma vida inteira está ancorada, à espera de uma maré.

O som deste rio é a sua pulsação. Não o de água corrente, mas o sístole metálico de um monitor ao longe, a diástole elétrica das lâmpadas no teto. É o roçar de um jaleco contra o ar, um motor que se move com o atrito da pressa. É o choro engolido antes de tomar forma, a conversa abafada que vaza por uma fresta, o chamado de uma senha num painel, sentenciando o próximo a navegar.

Os médicos e enfermeiros e os tantos outros profissionais do cuidado são seus navegadores. Conhecem as correntes, os redemoinhos de uma emergência, a calmaria tensa que precede um diagnóstico. Suas faces, por vezes, são máscaras de uma calma profissional, ocultando o cansaço de quem rema contra tempestades invisíveis. Movem-se com mapas de papel e experiência, os olhos fixos no horizonte imediato de um procedimento.

Os pacientes são as embarcações. Alguns, jangadas à deriva, levados pela correnteza de uma notícia súbita, o corpo como um mastro que perdeu a vela. Outros, barcos calejados que navegam com a lentidão de quem já conhece a rota, o casco cansado de muitas tormentas. Há os que são empurrados, e os que se movem com seus próprios remos de força, os olhos fixos num ponto adiante que pode ser a promessa da radiologia ou apenas o fim do corredor.

Mas há também os que chegam às margens, ainda com o cheiro da chuva e da rua nos casacos. São os visitantes, riachos de afeto e medo que vêm de fora para desaguar ali. Trazem flores que murcharão sob a luz artificial, sacolas com frutas e uma esperança frágil, palpável. Seus passos são hesitantes, como quem pede licença para pisar naquela água densa, naquele espaço onde a dor é soberana e o tempo obedece a outro relógio.

Neste rio, todos os destinos se cruzam. Um olhar se encontra com outro – o da mãe que acaba de receber uma notícia e o do técnico que apenas empurra um carrinho de limpeza. Não há palavras, mas por um instante as águas de duas vidas se misturam. Há uma estranha democracia neste fluxo: a espera não respeita profissão, o medo não escolhe sobrenome. Todos navegam sob o mesmo céu de gesso, no mesmo clima de incerteza.

E o rio continua a correr. Ele não julga, não consola, não apressa. Ele é apenas a passagem. A testemunha líquida e silenciosa do medo que vira coragem, da esperança que se agarra a um fio. Ele não deságua no mar, mas na memória de cada um que o atravessou, insistindo em fluir, teimosamente, mesmo quando o oceano parece um destino impossível.

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@giovanimiguez


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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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