Equipamentos modernos de oncologia em sala de tratamento hospitalar com iluminação branca e azul


Uma lei não é um edifício. É, antes, uma semente ou uma promessa. No papel, ela desenha a espinha dorsal de um corpo que se deseja forte contra a doença que redesenha geografias íntimas. A política do câncer se ergue assim, como uma coluna vertebral normativa, um eixo que promete organização e amparo. Mas uma espinha, por mais robusta que seja, não se sustenta no vazio. Ela precisa de carne, de sangue, de respiração. Precisa da integridade dos pilares que a abraçam para que a promessa de cuidado não se torne apenas um esqueleto de intenções.

O ser humano é um animal que se narra. A doença não é somente a disfunção da célula, a imagem revelada no laudo; é a ruptura da história, o capítulo inesperado que desorganiza a biografia. E se o cuidado se restringe à molécula e ao protocolo, ele toca a enfermidade, mas abandona a pessoa. A verdadeira cura, o verdadeiro amparo, acontece na ecologia dos saberes, onde a palavra do paciente é uma evidência tão crucial quanto o resultado do exame.

E o que seria da espinha sem o ar que a percorre? A humanização não é um protocolo a mais. É o próprio fôlego do cuidado. É a "metatécnica do encontro", a garantia de que a jornada, marcada pela perda de autonomia, não será atravessada na solidão da técnica. É a escuta que acolhe, a clínica que se amplia para enxergar o sujeito por trás dos sintomas, o projeto terapêutico que devolve ao paciente a caneta para ajudar a escrever seu próprio plano. A humanização é o que impede que a tecnologia, ao se tornar mais complexa, nos torne mais distantes. Ela é o contraponto, o calor que derrete a frieza do aço.

Mas o calor precisa de mãos que saibam tocar. Mãos competentes, cujo saber não se torna obsoleto diante da velocidade do tempo. A educação que pulsa no cotidiano, que bebe dos problemas reais para gerar aprendizado, é o músculo que move este corpo. Em um campo onde a ciência avança em ritmo vertiginoso, a competência não é um diploma na parede, mas um movimento incessante de renovação. Sem esse movimento, a espinha se enrijece, e a promessa de um cuidado igual para todos se quebra na geografia da desigualdade, onde o saber se concentra em poucos centros e abandona as periferias do país.

E há o leme, a mão firme que governa o barco. A tecnologia é um mar de possibilidades, mas também de correntes perigosas e cantos de sereia. É preciso um árbitro, um pensamento que pondere entre o novo e o necessário, entre o custo e o valor, entre o direito de um e a sustentabilidade de todos. Esse leme da inovação racional define o arsenal disponível, mas mais do que isso, atua como um guardião da equidade, garantindo que o avanço da ciência sirva à vida, e não ao mercado.

Por fim, há o horizonte para onde todo o cuidado aponta: a dignidade. Os cuidados paliativos, elevados à condição de eixo, são a refutação da lógica que só enxerga a cura como vitória. São a afirmação de que a vida tem valor em cada um de seus dias. Integrados desde o início, eles são a expressão mais pura da humanização. Manejam a dor, oferecem o suporte, permitem conversas honestas e repudiam a obstinação que prolonga o sofrimento em nome de uma batalha já sem sentido. Eles redefinem o sucesso, que passa a ser medido não em meses de sobrevida, mas na qualidade da luz de cada instante vivido.

Pois a rede do cuidado oncológico é tecida com todos esses fios. Se a mão que cuida não é sábia, o fio da competência se rompe. Se o encontro é frio, o fio da humanidade se desfaz. Se o leme da tecnologia falha, o barco se perde. E se o horizonte da dignidade é esquecido, toda a jornada perde o seu porquê.

A saúde desta espinha dorsal é, em essência, a saúde do corpo inteiro. A luta contra o câncer se vence com ciência, sim. Mas a batalha pela vida se vence com acolhimento, saber e dignidade, entrelaçados, inseparáveis, como a trama que sustenta a frágil e teimosa condição de ser humano.

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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