Mãe e filho caminhando pelos escombros de gaza à noite


microcontos poético-jornalísticos sobre a guerra entre Palestina e Israel


Introdução

Entre muros erguidos à pressa e portas arrombadas pela fúria, há histórias que não cabem nos jornais. É sobre elas que escrevo.

Nesta pequena reunião de angústias, reúno dez microcontos e dois poemas que me vieram após um estranho e longo sonho. São escritos que poderiam estar escritos na poeira das ruas, nas paredes marcadas por datas e nomes, nas mãos que seguram o nada e ainda assim carregam tudo.

Em Gaza, o tempo não se mede em horas, mas no intervalo entre a sirene e o estrondo. A infância se apaga mais rápido que uma vela ao vento, e o amor é sempre uma carta sem endereço certo.

Mesmo assim, há quem plante romãs nas frestas, quem construa janelas para ver o mar, quem levante a voz quando a cidade é só escombro.

São histórias pequenas, mas não frágeis; porque, no fim, resistir é também contar.




Romã


nas tuas sementes,

o mapa de um país partido.


cada grão

um nome, uma casa,

um riso interrompido.


és sangue e mel,

fome e festa,

cicatriz que floresce no frio.


teu vermelho arde na mão do vendedor

que insiste em te oferecer

mesmo quando o mercado é só pó,

mesmo quando a sirene grita mais alto.


és ventre e memória,

pátria e partida.

um fruto inteiro

num mundo em escombros.


Vozes sem Fronteiras



No pátio, a bola parada. O menino não volta. A mãe grita seu nome no pó. O eco responde com silêncio.

~~

No abrigo, uma vela tremula. Luz fraca no rosto das crianças. Lá fora, o mundo desaba. Aqui dentro, aprendem a contar pelo som das bombas.

~~

Ela escreve a data na parede: o dia em que restaram três pães, dois corpos e nenhuma árvore.

~~

O soldado segura a fotografia. Atrás dele, fumaça e ruínas. Na foto, uma menina ri. Na frente dele, ela não está mais.

~~

Chovia poeira no campo de refugiados. O velho dizia: “Era trigo, aqui”. A neta perguntava: “Trigo é o quê, vô?”

~~

No corredor do hospital, macas enfileiradas. Um médico conta histórias de mar para meninos que nunca viram água além das lágrimas.

~~

A casa desabou antes do beijo. Ele guardou a aliança no bolso. Agora, é só metal frio e uma promessa sem endereço.

~~

O repórter fecha os olhos. A câmera continua gravando. No vídeo, a última frase de uma criança: “Volta amanhã, pra brincar”.

~~

Duas bandeiras, dois muros, um mesmo céu cortado por sirenes. E a lua, sem passaporte, insiste em atravessar.

~~

No quintal, pedaços de brinquedo. O pai cava com as mãos. Não busca ossos. Procura o último riso que ouviu da filha.


Datas e Destinos



Gaza, outubro de 2023. Um míssil atingiu a rua do mercado. Frutas, sangue e poeira no mesmo chão. Um vendedor, ainda vivo, oferecia romãs como se fosse possível continuar.

~~

Hospital Al-Shifa, madrugada. Faltou luz no centro cirúrgico. Um médico segura a lanterna com a boca enquanto salva um recém-nascido.

~~

A mãe chora. Não se sabe se de dor ou milagre. Sderot, fronteira sul. Um pai corre com o filho no colo entre sirenes e estilhaços.

~~

O menino pergunta: “Estamos indo ao parque?”. O pai não responde. Campo de Jabalia, entre ruínas e tendas rasgadas.

~~

Uma menina ensina a boneca de pano a se esconder quando ouvir o estrondo. A boneca não aprende.

~~

Tel Aviv, 7 de outubro. Um celular toca no bolso de um morto. A tela acesa mostra “mamãe”. A chamada cai no silêncio antes que alguém atenda.

~~

Khan Younis, ao amanhecer. Um homem recolhe pedaços de vidro. Diz que vai reconstruir a janela. O vizinho pergunta: “Pra quê?”. Ele sorri: “Pra ver o mar”.

~~

Beit Hanoun, fim de tarde. O chamado à oração ecoa sobre escombros e poeira. Mesmo sem mesquita, alguém ainda responde: “Allah Akbar”.

~~

Jerusalém Oriental, num beco estreito. Dois meninos jogam bolinhas de gude como se o chão não guardasse marcas de sangue secas.

~~

Faixa de Gaza, 12 de novembro. Um jornalista segura o microfone com as mãos trêmulas. Atrás dele, fumaça. Na transmissão ao vivo, um silêncio diz tudo.

~~

Hebron, noite fria. Um soldado oferece água a uma criança. Ela bebe rápido, mas não sorri. Aprendeu que a sede volta antes da paz.



Epílogo

Quando a fumaça se dissipa, o silêncio não é paz, é luto procurando nome. As ruas continuam feridas, mas nelas brotam passos tímidos, crianças que aprendem de novo a correr sem contar os segundos até o próximo alarme.

O céu, apesar de tudo, permanece inteiro, e a lua — sempre ela — atravessa fronteiras como se quisesse lembrar aos homens que nada, além da vida, merece ser conquistado pela força.

E enquanto houver alguém para ouvir, essas histórias seguirão vivas. Porque a memória, mesmo sob escombros, é a primeira semente da reconstrução.



às 4h


hoje acordei às 4h.

o quarto, um poço morno de sonhos.


o impacto veio seco,

um rasgo de luz fria.


não sei

se foi pesadelo

ou recado.


restou um rosto

desfeito na penumbra,

uma palavra suspensa

no ar.


o dia começou.

mas não era dia.


o sol, intruso.

as paredes, retendo o escuro.


o medo entrou.

bateu. ficou.


(textos criado entre a madrugada e o amanhecer de 12/08/2025, após um sonho estranho)

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@giovanimiguez




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MAIS SOBRE MIM
Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em gestão pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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