Ilustração em díptico confronta “aquele que controla”—cidade, dados, DNA—e “aquele que cuida”—chá, pão, afeto. Um prumo separa técnica e acolhimento, convidando à reflexão.


a Alessandra de Sá-Earp Siqueira, pela parceria.


a cidade acende seus botões.

relógios batem como catracas.


aquele que controla

desenha linhas retas

para um mundo que trepida.

mede o silêncio.

amarra o vento em números.

converte medo em planilha.

promete um amanhã nivelado —

sem rugas,

sem falhas,

sem tropeços.


aquele que cuida

acende água para o chá.

aprende o ritmo das mãos cansadas.

ouve o que não cabe na estatística.

costura ausências com fio de presença.

põe um prato a mais na mesa

antes de falar de metas.


o primeiro ergue catedrais de vidro.

genomas em prateleiras.

protocolos como cercas brancas

em torno do corpo.


o segundo abre janelas na pele do dia.

interpreta o tremor do lábio.

a febre num olhar.

a pausa que pede cadeira.


na sala de comando

a saúde vira miragem lisa

promessa de longevidade sem fendas

como se viver fosse manter

um gráfico sem ruído.


no pátio da vizinhança

a saúde é roda de gente.

é um pão que cresceu devagar

entre mãos diferentes.

é o corpo lembrado

com sua diferença inteira.


aquele que controla

quer normalidade de manual.

um mundo calibrado a prumo

com o coração no rodapé.


aquele que cuida

sabe do peso do outro no meu passo.

sabe que ninguém caminha

com a fome alheia apertando o peito.

diz: justiça é o nome simples

do cuidado quando cresce.


há dias em que o prumo governa

e a cidade aperta o colarinho.

sistemas eficientes,

injustiças perfeitas.

ruas limpas para poucos.

silêncio de ambulâncias

que não chegam.


há dias em que o abrigo ensina o prumo.

o plano dobra o joelho.

a ferramenta aprende a escutar.

o algoritmo perde a pressa

na fila do posto

e se senta.


se a gestão confunde controle

com cuidado,

o mundo fica duro

como maçã de cera.

bonito.

impossível de morder.


quando aquele que controla

se deixa afinar por aquele que cuida

o edifício desaperta o pescoço da rua.

o mapa ganha margens.

o tempo abre uma sombra fresca

para quem se atrasou.


não peço menos técnica.

peço mãos que saibam o peso do copo.

peço olhos que não passem reto

pelo chão da feira

onde um idoso respira

como quem carrega um piano.


no fim do turno

entre o prumo e o abrigo

há uma pergunta que faz luz na esquina:

que mundo você ergue

quando mede?

que mundo você salva

quando escuta?


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@giovanimiguez


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MAIS SOBRE MIM
Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Sou poeta escritor e pesquisador. Nasci em Volta Redonda, mas vivo na cidade do Rio de Janeiro. Sou autor de mais de 20 livros. Possuo formação em gestão pública com extensão em Jornalismo de Políticas Públicas, doutorado e mestrado em Ciência da Informação, além de especializações em Sociologia e Psicanálise e formação em Biblioterapia e Mediação de Leitura. Atualmente, investigo temas relacionados ao trabalho, corpo e cuidado, além do papel da leitura como prática de cuidado de si, do outro e do mundo e como estratégia para o fortalecimento do indivíduo e dos laços sociais.

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