Considerações iniciais
No coração da prática em saúde, onde a precisão da ciência encontra a fragilidade da condição humana, reside um paradoxo persistente. No mesmo século em que a tecnologia nos permitiu mapear o genoma e visualizar o interior do corpo com uma clareza sem precedentes, um sentimento crescente de insatisfação emergiu tanto entre médicos quanto pacientes. Um abismo de mútua incompreensão parecia alargar-se, separando a cultura científica da experiência vivida do adoecimento. Foi como resposta a essa fissura, a essa necessidade de reencontrar a humanidade em meio aos protocolos, que emergiu a Medicina Narrativa.
Cunhada por Rita Charon, essa abordagem propôs resgatar a empatia e a confiança através da "competência narrativa": a habilidade de reconhecer, absorver e ser genuinamente movido pelas histórias de doença. Por mais de duas décadas, este campo floresceu, nutrindo-se da literatura e da filosofia para transformar a escuta em um ato terapêutico. Contudo, a própria semente que deu vida ao movimento revelou-se, com o tempo, a casca que continha seu crescimento. O termo "Medicina", em sua centralidade histórica e simbólica, ainda que de forma não intencional, manteve a figura do médico no epicentro de uma prática que, por sua natureza, é uma constelação de saberes.
Este ensaio, inspirado na proposta de uma transição conceitual, busca explorar a jornada da "Medicina Narrativa" para o "Cuidado Narrativo" (Miguez da Silva, 2025), tema de um artigo de minha autoria recém publicado, não como uma simples troca de palavras, mas como uma evolução paradigmática que desloca o eixo do poder, democratiza a escuta e reconhece que a história do paciente não é um texto a ser decifrado por um único leitor, mas uma partitura a ser executada por uma orquestra interprofissional.
A Palavra como Símbolo
Toda prática se define, primeiro, por sua palavra. A "Medicina Narrativa" nasceu de uma reação justa e necessária, um esforço para reequilibrar a balança que pendia perigosamente para o lado da técnica em detrimento do toque. Sua crítica fundamental se dirigia ao modelo biomédico, um paradigma que, ao focar obsessivamente na doença (disease), frequentemente se esquecia do doente e de sua experiência singular de adoecer (illness). Nesse sistema, a história contada pelo paciente era muitas vezes fragmentada, interrompida e traduzida para uma versão clinicamente útil, perdendo no processo sua textura existencial. A proposta de Charon era, então, "honrar as histórias de doença"através de um método estruturado em três movimentos essenciais: a atenção, uma escuta profunda e radical; a representação, o ato de dar forma à história através da escrita para revelar novas camadas de sentido; e a afiliação, a conexão autêntica que emerge desse processo e constitui o verdadeiro objetivo do cuidado. Esta abordagem se mostrou uma ferramenta pedagógica poderosa, capaz de despertar nos estudantes um anseio por uma prática menos protocolar, mais empática e conectada.
No entanto, a força semântica da palavra "Medicina" projeta uma longa sombra. Social e institucionalmente, ela evoca a figura do médico, o ato de diagnosticar e o modelo de cura. Mesmo que a intenção da Medicina Narrativa seja a de subverter o modelo tradicional, seu próprio nome a ancora nele. Essa centralidade simbólica, ou "medicocentrismo", arrisca-se a se tornar um obstáculo para a disseminação da própria filosofia que prega. A esmagadora maioria dos estudos, mesmo quando incluem outros profissionais, é conduzida em cursos de medicina e fala a partir de uma perspectiva médica. A palavra, aqui, não é apenas descritiva; ela é performática. Ela constrói uma realidade em que a competência narrativa, ainda que implicitamente, parece ser uma prerrogativa ou especialidade médica, ofuscando o fato de que a "escuta sensível" é uma competência essencial e já praticada por toda a teia de profissionais que compõem o cuidado.
O Sistema como Contexto
A transição semântica de "Medicina" para "Cuidado" não é superficial; ela implica uma profunda reconfiguração estrutural. Ao abandonar a centralidade de uma única profissão, passamos a enxergar a prática narrativa não como uma ferramenta individual, mas como um paradigma para toda a equipe de saúde. O termo "Cuidado" é, por definição, mais democrático e abrangente. Ele é inerentemente relacional e descreve o espectro de ações compartilhadas por todas as profissões da saúde, deslocando o foco do ato de curar — prerrogativa muitas vezes médica — para o ato de acolher, compreender e acompanhar, que é uma responsabilidade coletiva. Essa mudança dissolve a hierarquia tradicional, onde o médico figura como o intérprete principal da narrativa, e promove uma relação mais horizontal, na qual a história do paciente se torna um campo comum, um território a ser explorado em conjunto pela equipe e pelo próprio indivíduo.
Essa nova arquitetura semântica reconhece que a narrativa do paciente não é um insumo para o diagnóstico de um único profissional, mas a matéria-prima para a construção de um plano de cuidado coletivo e interprofissional. O adoecer não é apenas um evento biológico a ser decifrado, mas uma "reconfiguração do nosso ser-no-mundo", e a resposta a essa crise deve ser igualmente holística e colaborativa. O Cuidado Narrativo, portanto, propõe uma estrutura onde a prática deixa de ser um ato de um solista para se tornar a performance de uma orquestra interprofissional. Ele absorve os pilares da atenção, representação e afiliação, mas os reinscreve em um arcabouço colaborativo. A estrutura do cuidado deixa de ser uma pirâmide com um especialista no topo para se tornar uma rede, onde cada nó — cada profissional, o paciente, a família — contribui com sua perspectiva para tecer um plano terapêutico mais resiliente e humano. A doença pode ser a mesma, mas a experiência do adoecer é única, e essa unicidade só pode ser compreendida pela fusão de múltiplos horizontes de escuta.
A Relação como Núcleo
Com uma nova semântica e uma nova estrutura, emerge um novo processo. O Cuidado Narrativo se operacionaliza através de práticas que encarnam seus princípios de colaboração e horizontalidade. Não se trata mais apenas da escuta individual em um consultório, mas da institucionalização de espaços e ferramentas que transformam a partilha de histórias em um processo central do cuidado. A proposta de estratégias como "rodas de narrativas", onde a equipe, e por vezes o próprio paciente, se reúne para compartilhar e refletir sobre as histórias, e o "prontuário narrativo compartilhado", que abre espaço para a perspectiva do paciente e de diferentes profissionais, são exemplos de como esse novo paradigma pode se materializar no dia a dia. O prontuário deixa de ser um registro burocrático de dados objetivos para se tornar um documento vivo, um testemunho polifônico da jornada do cuidado.
Nesse processo, o paciente deixa de ser o "texto" a ser lido para se tornar coautor de sua própria história de cuidado. A competência narrativa se torna interprofissional: a "leitura" de um médico pode focar na patologia, a da enfermagem no impacto funcional, a da psicologia nas ressonâncias emocionais. A "representação colaborativa" permite que essas leituras se entrelacem, criando um entendimento muito mais rico e completo do que qualquer olhar isolado poderia alcançar. A "afiliação em rede" constrói vínculos não apenas entre profissional e paciente, mas entre os próprios membros da equipe, que se reconhecem e se fortalecem através das histórias compartilhadas. Este processo tem o potencial de não apenas melhorar os desfechos clínicos e a satisfação do paciente, mas também de combater o burnout profissional. Ao criar espaços para a partilha de narrativas — não só as dos pacientes, mas as dos próprios cuidadores —, o Cuidado Narrativo oferece um caminho para uma prática mais sustentável e significativa, transformando a equipe em uma verdadeira comunidade de escuta.
Conclusão: A Palavra como Cuidado
A evolução da "Medicina Narrativa" para o "Cuidado Narrativo" é, em essência, um ato de descolonização epistemológica. É a libertação de uma ideia poderosa das fronteiras de uma única disciplina para que ela possa florescer em todo o campo da saúde. Este reposicionamento paradigmático não rejeita a herança de Rita Charon, mas a honra e a expande, preservando os pilares da atenção, representação e afiliação ao reinscrevê-los em uma arquitetura interprofissional e colaborativa.
A proposta não é um idealismo abstrato, mas uma resposta pragmática a uma crise de sentido que afeta tanto quem cuida quanto quem é cuidado. Ao mover o eixo de "Medicina" para "Cuidado", movemos o foco da doença para a pessoa, da cura para o acompanhamento e da autoridade de um profissional para a sabedoria de uma equipe.
As implicações são profundas, exigindo uma transformação no ensino, com a transversalização das competências narrativas nos currículos; no serviço, com a implementação de dispositivos como as rodas de narrativas; e na pesquisa, com a avaliação de desfechos que valorizem o vínculo e a satisfação.
Em última análise, a transição para o Cuidado Narrativo é um reconhecimento de que, no complexo teatro da saúde, a história de quem adoece não é um monólogo a ser interpretado, mas um diálogo a ser construído. É a afirmação de que o cuidado mais profundo não reside na palavra que diagnostica, mas na comunidade que escuta.