Considerações iniciais
No universo do cuidado, poucas coisas são tão potentes e, ao mesmo tempo, tão subestimadas quanto a palavra. Ela pode ser bisturi ou bálsamo, um labirinto de jargões técnicos ou um fio de Ariadne que guia o aflito para fora da escuridão da incerteza. Em nosso tempo, saturado de dados, mas faminto de sentido, a distinção entre o que é meramente dito e o que é verdadeiramente comunicado se torna a fronteira entre o tratamento e a cura, entre a gestão da doença e o resgate da dignidade humana. É nesse território delicado que a linguagem nos oferece uma chave, uma bifurcação sutil, mas abissal, entre os conceitos de cuidado "informativo" e cuidado "informacional".
À primeira vista, parecem ecos da mesma intenção, variações de um mesmo zelo. Contudo, desvelar a profundidade semântica que os separa é iniciar uma jornada que parte da superfície da mensagem para mergulhar nas correntes ocultas do poder, da justiça e da própria estrutura do cuidado. O cuidado informativo, em sua essência, é o ato de entregar um mapa. O cuidado informacional, em sua plenitude, é a coragem de caminhar junto, de decifrar a paisagem em conjunto, de entender que, para quem enfrenta o desconhecido, o mapa mais preciso de nada serve sem a mão que aponta, a voz que acolhe e o silêncio que compreende.
Este ensaio se propõe a percorrer essa trilha, do semântico ao estrutural e, finalmente, ao processual, para demonstrar que a escolha pelo termo "Cuidado Informacional" (Miguez da Silva, 2025), como defendido no artigo de minha autoria, recém publicado, que o inspira, não é uma preferência acadêmica, mas um manifesto ético em favor de uma comunicação em saúde que seja, antes de tudo, uma prática de justiça epistêmica.
O horizonte semântico: a palavra como objeto
Toda comunicação começa com a palavra, com a informação em sua forma mais elementar: o dado, o fato, a instrução. O cuidado informativo habita este plano de existência. Ele é a ética da clareza, a estética da precisão. Sua nobreza reside em lapidar a mensagem até que ela se torne transparente, acessível, despojada das barreiras do jargão e da complexidade desnecessária. É o médico que traduz o diagnóstico para uma linguagem que o paciente possa absorver, a bula de remédio que se faz entender, o manual que guia a montagem de um futuro que parecia desmontado. Nesta dimensão, o cuidado é com o quê. A pergunta que o move é: "A informação que transmito é correta, clara e útil?". É um cuidado tático, operacional, focado na qualidade do objeto informacional.
Contudo, ao nos atermos apenas a este horizonte, corremos um risco profundo: o de tratar a informação como um objeto a ser transferido de um emissor ativo para um receptor passivo. Nesta troca, o paciente se torna um recipiente, um depósito onde o conhecimento validado do especialista é depositado. A relação é vertical, a comunicação, um monólogo disfarçado de serviço. Mesmo quando executado com a mais pura intenção, o cuidado puramente informativo falha em reconhecer que a informação nunca chega a um território neutro. Ela aterrissa em um solo fértil de medos, esperanças, crenças e experiências vividas. Uma informação, por mais clara que seja, pode ser devastadora se entregue sem considerar o mundo interior de quem a recebe. Ela pode ser tecnicamente perfeita, mas humanamente brutal. É o mapa entregue a quem tem medo de dar o primeiro passo. A falha, aqui, não está na precisão do mapa, mas na ausência de um guia que reconheça o tremor nas pernas do viajante. O artigo "Cuidado Informacional" parte do reconhecimento desta insuficiência. Ele compreende que o problema na comunicação em saúde , mais precicsamente na oncológica, não é apenas a falta de clareza, mas uma fratura mais profunda, uma "injustiça epistêmica" (conceito de Miranda Fricker) onde a experiência e o saber do paciente são sistematicamente invalidados, tornando a entrega de informação, por si só, um ato de perpetuação de poder, e não de cuidado genuíno.
A arquitetura estrutural: o sistema como contexto
Se o cuidado informativo (termo semanticamente diverso) se ocupa da qualidade do mapa, o cuidado informacional (termo que nos deteremos) eleva o olhar para a biblioteca inteira. Ele questiona a própria arquitetura do espaço onde os mapas são guardados, consultados e compartilhados. O foco se desloca do "o quê" para o "onde" e o "como". A preocupação deixa de ser apenas a mensagem para abarcar o sistema e o ecossistema que a suporta. Esta é a dimensão estrutural do cuidado, um território de governança, design e organização. A pergunta-chave aqui é: "Como garantimos que a informação certa chegue à pessoa certa, no momento certo, de forma segura, ética e eficiente?".
Esta é uma mudança de paradigma. O cuidado informacional entende que a informação não existe no vácuo; ela é mediada por sistemas. Um prontuário eletrônico mal projetado, um fluxo de agendamento confuso, a falta de privacidade em uma sala de espera, a dificuldade de acesso aos próprios dados de saúde – tudo isso constitui falhas informacionais que geram sofrimento, ansiedade e desempoderamento. São as paredes invisíveis da biblioteca que impedem o leitor de encontrar o livro de que precisa. No contexto do artigo, esta dimensão é explicitamente abordada no "Eixo da Gestão". A proposta não é apenas treinar profissionais prestadores do cuidado para se comunicarem melhor, mas redesenhar os sistemas de saúde. Trata-se de criar fluxos de cuidado que assegurem a continuidade informacional, de implementar programas de suporte que funcionem como pontes sobre os abismos do sistema, de pensar a arquitetura dos serviços de saúde como espaços que promovem ou inibem a comunicação justa.
A justiça epistêmica, portanto, não é apenas um ideal interpessoal, mas uma meta estrutural. Um sistema que protege os dados do paciente com rigor, que organiza a informação de forma intuitiva e que projeta seus processos com o usuário no centro, está praticando cuidado informacional. Ele está construindo uma biblioteca onde o conhecimento não é apenas guardado, mas ativamente facilitado. Ele reconhece que a estrutura não é neutra; ela é uma força que pode silenciar ou dar voz, oprimir ou libertar. A escolha pelo termo "informacional" é, portanto, um reconhecimento de que a comunicação não pode ser curada apenas com palavras melhores; ela exige sistemas melhores, arquiteturas de cuidado que sejam, em seu próprio DNA, mais justas e humanas.
A estrutura processual: a relação como núcleo
Chegamos, enfim, ao coração do cuidado informacional: a dimensão processual. Já temos o mapa claro (o semântico) e a biblioteca bem projetada (a estrutural). Agora, o que acontece quando o leitor entra e interage com o bibliotecário? Este é o processo, a relação viva e pulsante que dá sentido a tudo o mais. O cuidado informacional, em sua forma mais elevada, é uma prática relacional. É uma estrutura dialógica, um fluxo contínuo de escuta, validação e co-construção de sentido. Ele transcende a entrega de informação e se torna um ato de parceria epistêmica.
É aqui que o conceito de "injustiça epistêmica" se revela em toda a sua força. A "injustiça testemunhal" ocorre quando o relato do paciente – sua dor, sua intuição, sua experiência – é desacreditado por preconceitos sobre seu status. A "injustiça hermenêutica" acontece quando o paciente não possui as ferramentas conceituais para compreender ou comunicar o que está vivendo, e o sistema de saúde não o ajuda a construí-las. O cuidado informacional, como proposto no manuscrito, é o antídoto direto para essas injustiças. Os "Eixos Clínico e Educacional" são a força desta proposta estrutural.
A "decisão compartilhada" deixa de ser um protocolo para se tornar uma filosofia, onde o conhecimento técnico do profissional e o conhecimento vivido do paciente se encontram em pé de igualdade para traçar um caminho. A "validação da experiência do paciente" transforma o ato de ouvir em um ato de reconhecimento, afirmando que o sofrimento, a dúvida e a esperança do indivíduo são dados tão válidos quanto um exame de sangue. A inclusão da família e da rede de apoio os redefine como "aliados epistêmicos", participantes ativos no processo de cuidado. O profissional, por sua vez, é chamado a cultivar a "humildade epistêmica", a consciência de que seu saber é poderoso, mas não absoluto. O paciente deixa de ser um objeto de cuidado para se tornar um "sujeito epistêmico", um parceiro ativo e indispensável na jornada. Este cuidado não é um evento, mas um processo contínuo, uma relação que se constrói e reconstrói a cada encontro, em um fluxo de confiança e respeito mútuo.
Conclusão: a palavra como manifesto
A jornada da palavra "informativo" para "informacional" é, em última análise, uma travessia de um paradigma mecanicista para um paradigma humanista e sistêmico. Ela nos leva a compreender que a comunicação em saúde não é uma simples transação de dados, mas um complexo ato ético, político e relacional. O cuidado informativo, com seu foco no conteúdo, é necessário, mas fundamentalmente insuficiente. Ele oferece a letra, mas ignora a música. O cuidado informacional, ao abraçar a estrutura e o processo, nos oferece a partitura completa. Ele entende que para que a informação cure, ela precisa ser inserida em sistemas justos e vivenciada em relações de confiança.
Deste modo, o artigo, ao fincar sua bandeira no conceito de Cuidado Informacional, faz mais do que uma escolha terminológica precisa. Ele propõe uma reengenharia da alma do cuidado em saúde e em consequência, no cuidado oncológico. Ele nos convida a ver o paciente não como um déficit de conhecimento a ser preenchido, mas como um universo de saberes a ser explorado. Convida os profissionais a serem não apenas detentores de respostas, mas guardiões de perguntas, facilitadores de sentido. E conclama os gestores a serem não apenas administradores de recursos, mas arquitetos de ecossistemas de cuidado que promovam a dignidade. A distinção entre os dois termos, portanto, deixa de ser sutil. Ela se torna o limiar entre um cuidado que informa o corpo e um cuidado que acolhe a pessoa inteira. É a diferença entre oferecer um mapa e partilhar a jornada, sabendo que, no território da vulnerabilidade humana, nenhum mapa jamais substituirá o calor de uma mão que se estende para guiar. A escolha pela palavra "informacional" é, assim, um manifesto. É a afirmação de que a verdadeira comunicação não é sobre o que dizemos, mas sobre os mundos que construímos – ou destruímos – juntos, a cada encontro, a cada palavra, a cada silêncio.