Cuidador oferecendo suporte emocional segurando a mão de uma pessoa idosa em ambiente acolhedor


No grande teatro da doença, o foco de luz recorta a silhueta de um só protagonista. É o paciente, aquele cujo corpo se tornou o palco onde metáforas e representações sociais atuam. Sua história é a que ouvimos, a que a clínica documenta, a que a cultura exalta: um enredo de resiliência, luta e travessia. Mas em paralelo a esta narrativa iluminada, nos bastidores do cuidado, corre uma outra história, uma crônica de vigília que se desenrola na penumbra. É a história do cuidador familiar, o coprotagonista silencioso cuja existência é o alicerce de toda a trama, mas cuja voz raramente encontra eco.

Este ensaio é um convite para desviar o olhar do centro do palco. Pois a invisibilidade do cuidador não é um mero descuido social; é uma falha clínica, uma ferida ética no coração do cuidado. A doença, quando chega, não acomete um indivíduo, mas um sistema de afetos. O cuidado oncológico é, em sua essência, um cuidado de díades, e o bem-estar de quem cuida e de quem é cuidado estão atados por um fio invisível e inquebrável. Ignorar a história que corre em paralelo é tratar apenas metade da equação do sofrimento, é deixar que o alicerce rache em silêncio enquanto aplaudimos a fachada.

A narrativa do cuidador é um texto complexo, escrito não com palavras, mas com a linguagem do corpo exausto, da mente em alerta constante. É uma crônica de sobrecarga. O corpo, que antes vivia, passa a servir, imerso numa dedicação que o faz esquecer da própria fome, do próprio sono, da própria dor. A mente se torna um território de vigília, assombrada por uma ansiedade que não cessa e uma solidão que o quarto cheio não aplaca. A vida social se esvai, os amigos se afastam, o trabalho se torna uma memória distante. O mundo encolhe até caber nos limites de um quarto de hospital ou de uma casa que se transformou em enfermaria. A sobrecarga não é um sintoma; é a própria sintaxe desta história não verbalizada.

No coração desta narrativa, pulsa um nó de sentimentos contraditórios. O cuidado nasce do amor, mas é açoitado pelo ressentimento. A dedicação incondicional convive com um desejo desesperado de fuga. É a ambivalência, essa condição profundamente humana que a cultura do sacrifício tenta esconder sob o tapete da virtude. A sociedade glorifica o cuidador que se anula, e com isso, estigmatiza a raiva, a frustração, o esgotamento, como se fossem falhas de caráter, traições ao amor. Preso nesta armadilha moral, o cuidador sente culpa por sentir o que é inevitável, e a culpa o impele a cuidar ainda mais, num ciclo que o consome até que a sua própria identidade comece a se apagar. A pergunta “quem sou eu, para além de cuidador?” fica sem resposta, um eco num self esvaziado, em luto pela própria vida que foi suspensa.

E é neste ponto que as duas histórias, a do protagonista e a do coprotagonista, podem entrar em rota de colisão. A narrativa socialmente aceita para o paciente é a da batalha, da luta, do guerreiro. É uma história que exige positividade, que não abre espaço para a fraqueza. Mas a verdade do cuidador é a do esgotamento. Sua história é a antítese da positividade forçada. Como pode o exausto dar apoio ao guerreiro? Como pode a narrativa da vigília encontrar lugar na epopeia da luta? O cuidador se cala para não trair a batalha do outro, e seu silêncio se torna um abismo entre os dois. O sofrimento, então, torna-se contagioso. A ansiedade de um alimenta a do outro, a depressão de um espelha-se na do outro. O esgotamento do cuidador deixa de ser um problema secundário e torna-se um fator de risco clínico para o próprio paciente.

Cuidar de quem cuida não é, portanto, um ato de caridade. É um imperativo clínico e uma questão de justiça. É reconhecer que esta díade é a verdadeira unidade de cuidado. É transformar a invisibilidade em validação, o esgotamento em suporte. Requer a criação de espaços institucionais de escuta, onde a narrativa do cuidador possa ser dita sem culpa. Onde a ambivalência seja reconhecida não como falha, mas como prova de humanidade. Onde a sobrecarga seja lida não como fraqueza, mas como o texto de uma história que precisa urgentemente de atenção.

Apoiar o cuidador é oferecer ferramentas para que ele possa continuar a sua travessia. É a psicoeducação que ensina, o grupo de apoio que acolhe, a terapia que ajuda a processar o luto pela identidade perdida. O objetivo final transcende o alívio dos sintomas. É facilitar a co-construção de uma nova história para a díade, uma narrativa partilhada que tenha espaço para a complexidade, que possa conter tanto a bravura da luta quanto a dor do esgotamento. Uma história que não se defina apenas pela doença, mas pela força do laço que a atravessa.

A jornada do câncer nunca é a história de uma só pessoa. Para que o cuidado seja completo, a luz do foco precisa se alargar, iluminando não apenas o centro do palco, mas também os bastidores onde o co protagonista silencioso sustenta a trama. Apenas ao nos comprometermos a ouvir a história completa, com todas as suas vozes e contradições, poderemos cuidar de forma verdadeiramente justa, eficaz e humana

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@giovanimiguez

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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