Mãos segurando delicadamente um coração humano semi-transparente com elementos poéticos e abstratos ao redor, simbolizando cuidado e transformação

INTRODUÇÃO

Comer é sempre mais do que nutrir-se: é atravessar um rito. A boca que mastiga nunca se limita a triturar substâncias; mastiga também símbolos, memórias, ausências. Cada refeição é comunhão com a terra que germinou o trigo, com as mãos que o colheram, com o forno que o transformou em pão. É comunhão com os ausentes que se sentam invisíveis à mesa, com os mortos que ainda nos alimentam em silêncio, com os vivos que ainda não chegaram. Na tradição religiosa, esse mistério foi condensado no pão e no vinho, sinais de um Deus que se oferece como alimento. Mas o gesto é mais antigo e mais vasto. Em toda cultura, o ato de comer carrega essa potência de religação. Comer é sempre mastigar o mundo, digerir o real, metabolizar o divino.

É nesse ponto que nasce a proposta deste ensaio: uma teofagia crítica. Não o ato de engolir Deus para destruí-lo, num gesto de profanação reativa, nem de absorvê-lo de modo passivo e obediente, mas o de mastigar o divino para reescrevê-lo simbolicamente. Como toda digestão, trata-se de transformação. O alimento não permanece intacto, mas se converte em corpo, em energia, em palavra. O divino, quando digerido, não desaparece: reaparece como gesto humano, como cuidado, como poesia. Esta é uma travessia que recusa os alimentos processados da fé — os dogmas enlatados, as certezas de consumo rápido — para redescobrir o sabor do pão amassado com as próprias mãos, fermentado no tempo da dúvida e assado no calor do encontro.

A jornada começa com a filosofia de Xavier Zubiri, que nos oferece o primeiro horizonte para essa reflexão. Ele nos desaloja da imagem confortável de um Deus-ente, o supremo artesão no topo da criação, para nos lançar no mistério de Deus como realidade absolutamente absoluta, o fundamento último e sustentador de tudo o que existe. Para Zubiri, cada fragmento da realidade, da pedra ao pensamento, carrega em si uma formalidade de divindade, a deidade, que nos lança para além de si. Viver é estar, queiramos ou não, religado a essa fonte. A experiência religiosa, antes de ser doutrina, é esta condição estrutural: viver sustentado pelo poder da realidade. Essa religação, porém, não é uma contemplação passiva; é uma exigência. O real nos pede uma resposta. E aqui a teofagia crítica mostra sua força: digerir o divino é responder ao apelo da realidade, metabolizar sua presença avassaladora em narrativas, metáforas e, finalmente, em cuidado.

Se o real de Zubiri nos sustenta, Georges Canguilhem nos mostra como a vida, a forma mais inquieta desse real, responde a esse sustento. Ele nos ensina que a vida não se limita a obedecer a normas dadas: ela é criadora de normas. O corpo que adoece, visto por Canguilhem, não é um corpo que falha ou se desvia do “normal” estatístico; é um corpo em febril atividade legislativa, inventando novos equilíbrios, novas possibilidades para continuar a ser. A doença revela-se como um excesso de normatividade. Há aqui um paralelo evidente com a teofagia: mastigar o sofrimento e a desordem é encontrar outras formas de habitá-los, transformando a dor em linguagem, em nova norma, em gesto de reinvenção.

Essa norma viva, porém, precisa de uma voz. É o que nos ensinam Arthur Frank e Rita Charon ao nos introduzirem na dimensão da narrativa. A doença não se compreende apenas em exames e laudos, mas em histórias. O enfermo que narra sua dor oferece ao mundo os fragmentos de uma identidade estilhaçada, e ao narrar, metaboliza o caos em trama, o grito em enredo. A narrativa é uma forma encarnada de teofagia: digere-se o excesso do sofrimento transformando-o em palavra. Ignorar essa dimensão, como faz frequentemente a medicina tecnicista, é reduzir o paciente a um objeto de protocolo. Escutá-la é reconhecer o doente como autor e co-criador de seu processo de cura.

Mas toda narrativa, descobrimos, é tecida com os fios da metáfora. Susan Sontag nos alertou para o perigo das imagens bélicas que dominam o discurso sobre o câncer: ao transformar o corpo em campo de guerra, impõe-se ao paciente o papel de soldado e à doença, o de inimigo absoluto. Siddhartha Mukherjee, por sua vez, mostrou que esse inimigo é íntimo, nascido de nossa própria arquitetura celular. A teofagia crítica se torna, então, uma ecologia da linguagem: um convite para cuspir as metáforas tóxicas e cultivar imagens que curem — jardins, casas em reforma, viagens. Palavras que nutram, não que envenenem.

Da palavra passamos ao gesto. Com Álvaro Vieira Pinto e Donald Ingber, exploramos a metatécnica do cuidado. O primeiro nos adverte contra a técnica transformada em fetiche, em procedimento vazio de humanidade. O segundo nos oferece a imagem do corpo como tensegridade, uma teia de equilíbrios interdependentes. A metatécnica é a arte de aplicar a técnica com a consciência de que cada gesto reverbera por toda essa teia viva. É o “como” que redime o “o quê”. É a teofagia do fazer: mastigar o protocolo, digerir a frieza do procedimento e devolvê-lo como presença, ética e delicadeza.

Todas essas vozes e caminhos desembocam, finalmente, em um campo de prática concreta: a oncopoética. Aqui, a poesia deixa de ser ornamento para se tornar técnica de sobrevivência, insumo de cuidado, liturgia da resistência. Em oficinas, rodas de leitura e na própria escuta clínica, a oncopoética oferece ferramentas para metabolizar o indizível do câncer e devolvê-lo em forma habitável. O poeta ou o cuidador se torna um artesão de kintsugi, reparando a biografia fraturada com o ouro da linguagem.

O epílogo deste percurso só poderia ser um retorno ao pão que não se esgota. Ele é a imagem do divino que se deixa mastigar em cada fragmento do real. É o gesto da vida que insiste em reinventar normas. É a prática do cuidado que se faz liturgia. Este livro, portanto, não se encerra em si. Abre-se como uma mesa. Cada capítulo é uma fatia, cada autor é um fermento, cada leitura é uma mastigação. E o convite é este: comer juntos. Porque só assim o pão não se esgota, e só assim a vida se torna festa, mesmo em meio à dor.

1 TEOFAGIA CRÍTICA

“Só me interessa o que não é meu.”
Oswald de Andrade

Antropofagia foi nosso verbo inaugural, a insurreição semântica que nos permitiu ser continentes de nós mesmos. Comer para traduzir. Digerir para existir sem cabresto, sem a rédea da admiração subalterna. No estômago simbólico do modernismo, a cultura importada, engolida em reverência, era vomitada como invenção. A cópia perdia a voz e a originalidade ganhava dentes. O gesto de Oswald era um ato de soberania corporal e intelectual contra a asfixia do estrangeiro. Hoje, ouso deslocar essa mesa, mover os talheres para um banquete mais íntimo e talvez mais antigo. O prato principal não é mais a cultura hegemônica que chega de fora, mas o divino herdado que habita por dentro. Proponho uma Teofagia Crítica. Não para profanar em um gesto de rebeldia adolescente, pois a profanação ainda orbita o sagrado que nega. O objetivo é mais profundo: metabolizar. Fazer do divino alimento, e não mandamento. Uma ética do paladar espiritual.

Este ensaio é uma aposta na digestão contra a adesão cega, no metabolismo contra a literalidade que paralisa. Queremos que o sagrado, ao passar pelo corpo da linguagem e pela acidez da experiência, aprenda a cuidar. Que perca a arrogância dos pedestais e ganhe a sabedoria humilde do pão. Devoro aqui, com a lentidão que o ritual exige, os dogmas que se petrificaram em letras de bronze, as verdades eternas que se esqueceram de que o tempo existe. Ponho na boca as imagens sagradas que, de tanto serem veneradas, esqueceram o movimento e se tornaram ídolos de si mesmas. Mastigo as promessas celestiais que, na terra, viraram senhas de exclusão e muros de separação. Cada enunciado é provado como quem testa um fruto desconhecido na floresta. Se o seu suco amargar a dignidade humana, eu cuspo. Se a sua polpa nutrir o bem comum, a seiva da partilha, eu retenho e transformo em sangue. Neste processo, a fé, que nos foi vendida como armadura — rígida, pesada, impenetrável —, reaprende a ser pele. Porosa. Sensível. Relacional. Uma fé que sente o mundo antes de julgá-lo. Pois a letra, sem um corpo que a sinta, é apenas fome de poder. O símbolo, sem a circulação do afeto, azeda e se torna veneno.

A lição antropofágica foi clara: copiar é perecer, é entregar a própria voz ao ventríloquo. A teofagia crítica acrescenta uma nota de rodapé essencial: idolatrar a letra é indigesto. O ato de comer não se dirige a Deus, essa alteridade inominável, mas sim ao acúmulo de interpretações que se solidificaram, que deixaram de fermentar e viraram pedra. Comemos as teologias, não a teofania. E o que é o fermento senão o tempo agindo sobre a massa? Fermento é a dúvida que areja a certeza. Fermento é a partilha que impede a posse. Fermento é a tensão vital entre o silêncio do mistério e a urgência da palavra. Quando o divino é digerido, ele não desaparece; ele retorna transformado à mesa do cotidiano. Volta com outras maneiras, mais gentis, de dizer "por favor" e "obrigado". Abandona a majestade do trono para sentar conosco na cadeira bamba da cozinha. Deixa de ser um conceito abstrato para virar gesto concreto. Vira cuidado. Vira a mão que segura a outra no escuro.

Proponho um método de uma simplicidade quase orgânica, um ritmo em três tempos: Colher. Mastigar. Metabolizar.

Colher é o ato de se abaixar e recolher as narrativas do sagrado sem medo do pó, da ferrugem, das fissuras. É uma arqueologia amorosa. Implica em revisitar os textos, os ritos e os símbolos não como um devoto que teme a heresia ou um vândalo que busca a destruição, mas como um herdeiro que precisa decidir o que fazer com a herança. Colher é aceitar que as histórias sagradas são também profundamente humanas, marcadas pela contingência, pela violência e pela beleza de seu tempo. É ler nas entrelinhas, escutar as vozes que foram silenciadas para que a narrativa oficial se erguesse.

Mastigar é a fricção hermenêutica, o momento em que a mandíbula da vida tritura a rigidez do texto. É o trabalho lento e consciente de quebrar as estruturas sintáticas da obediência. Nesta fase, o texto encontra a vida e ambos se interrogam numa dança perigosa e fértil. Não vale tudo; a mastigação não é um convite à anarquia interpretativa. Há critérios claros, nascidos do paladar ético. O que humaniza, permanece. O que humilha, não serve. O que abre janelas, respira. O que ergue muros, asfixia. É um processo que exige coragem para perguntar: a serviço de quem está esta verdade? Que corpos esta imagem conforta e quais ela apedreja? A mastigação é o que impede a palavra sagrada de se tornar uma arma na mão dos poderosos.

Metabolizar, por fim, é o milagre da assimilação. É o momento em que o alimento, já decomposto e compreendido, se torna parte de quem o comeu. É devolver ao mundo o que se tornou carne ética, energia para a ação. O símbolo digerido não se acumula como gordura de erudição teológica; ele se transforma em hospitalidade, em justiça, em uma alegria que se reparte sem espetáculo e sem proselitismo. A teologia sai da cabeça e desce para as mãos. O verbo se faz carne, não como um evento único e longínquo, mas como uma prática diária e anônima.

Não confundo este processo com a apatia do relativismo. O relativismo é uma indiferença disfarçada de sofisticação, um encolher de ombros existencial. A teofagia crítica, ao contrário, é uma forma de cuidado radical. É um engajamento tão profundo com o símbolo que se recusa a deixá-lo morrer congelado em sua moldura dourada. Ícones, textos e ritos servem quando nos lembram da luz, quando apontam para algo além de si. Tornam-se perigosos quando a substituem, quando exigem adoração para si mesmos. Toda imagem é ponte. Quem se apaixona pela arquitetura do arco e se fixa no meio do caminho, esquece que a função da ponte é atravessar o rio. E o sagrado, tal como um rio, só vive se corre. Seus contornos mudam, suas águas trazem sedimentos novos, criam remansos inesperados e deixam uma umidade vital na pedra mais antiga. E isso basta.

Há um perigo antigo que nos ronda, uma patologia espiritual de nosso tempo: a pressa da certeza. A tentação de engolir sem mastigar. Fizeram-nos isso por séculos, e nós consentimos. Serviram-nos versículos como cápsulas de efeito rápido. Ritos como comprimidos para aliviar a dor da incerteza. Dogmas como latas de conserva, com um prazo de validade eterno, mas sem o sabor do alimento fresco. Toda conserva, porém, é uma negação do tempo. E o espírito, para ser vivo, precisa de ar, de fermentação, de transformação. A palavra precisa de um corpo que a questione para não virar mero ruído autoritário. A teofagia crítica oferece exatamente isso: tempo. Tempo de boca, de estômago e de coração. O divino, assim, não se torna um comando que humilha de cima para baixo, mas uma presença que convida a caminhar ao lado.

A finitude é nossa grande pedagoga. É porque somos finitos que a esperança aprende a andar devagar, a valorizar o pequeno. Os milagres teofágicos não levantam a voz, não produzem espetáculos. São discretos. Alguém que escuta alguém até o fim. Alguém que reparte o pouco que tem. Alguém que, depois de muito tempo, volta a dormir em paz. Essa liturgia sem incenso, celebrada na banalidade dos dias, é mais antiga e mais resistente que as paredes dos templos. É o resultado da palavra mastigada até virar gesto. É o que acontece quando a oração se faz ofício de justiça. Quando o cântico se torna fôlego para quem está cansado. Quando o texto sagrado se deixa traduzir na língua comum do mercado, da escola, do hospital.

Esta digestão simbólica não é, insisto, uma licença para dissolver tudo numa metáfora frouxa e inofensiva. É o exato oposto. É a exigência radical de que cada imagem, cada símbolo, cada metáfora responda pelo que faz no mundo concreto. Metáforas são ferramentas, não decoração. Se são facas, que cortem as correntes da opressão. Se são agulhas, que costurem o rasgo do tecido social. A prova do nove é sempre, e em última instância, a vida vulnerável. Se a mais bela doutrina não a reconhece em sua dignidade, não é casa, é jaula. Se a mais solene liturgia não a alimenta em sua fome, não é pão, é pedra.

No Brasil, a antropofagia nos ensinou a responder ao estrangeiro com invenção e soberania. A teofagia crítica, sua herdeira espiritual, nos pede que respondamos ao sagrado com responsabilidade. Não mais como súditos trêmulos do inefável, mas como coautores do sentido. Tradutores pacientes e implicados. E quem traduz, cuida. E quem cuida, cria mundo. A tradução teológica que proponho aqui é lenta, comunitária, sem o glamour das cátedras. É feita de escutas atentas, de glossas domésticas escritas à margem, de leituras em roda onde a autoridade circula. É feita, sobretudo, de perguntas insistentes: O que este símbolo sustenta? O que este rito silencia? O que esta doutrina promete e, crucialmente, a quem?

No fim, o que resta é a mesa. Uma mesa onde os símbolos foram servidos em estado de pão. Onde os nomes de Deus respiram em vez de sufocar. Onde os versos sagrados não mandam mais ajoelhar, apenas convidam a permanecer um pouco mais, a compartilhar o silêncio. A fé, despida da performance da pureza, reaprende a habitar as próprias contradições. Não para desculpá-las, mas para laboriosamente transformá-las. Conversão, aqui, é uma palavra dita em voz baixa, sem trombetas. É o gesto de mendigar sentido e encontrá-lo no rosto do outro. É o exercício de voltar, sempre que possível, ao alimento espiritual e perguntar, com honestidade: isto ainda nutre?

Se devo dar um nome a este gesto de cuidado e coragem, fico com ele. Teofagia Crítica. Não devoro Deus. Devolvo ao divino a chance de alimentar sem ferir. Pois o que não nutre, não é sagrado. O que não cuida, não merece culto. O resto é apenas barulho e indigestão. E enquanto comemos devagar, mastigando o mundo e o sagrado, o nó na garganta do tempo desaperta um pouco. E, nesse afrouxamento, a vida cabe melhor em nós.

2 DEUS COMO REALIDADE ABSOLUTA

Depois da boca se esvaziar do ranço dos dogmas, depois de cuspir a letra que amargava o humano, uma fome diferente se anuncia. Não mais a fome de devorar para purificar, mas a fome de provar o que restou. Se a teofagia crítica limpou a mesa das interpretações indigestas, o que se serve agora? Que substância é essa que, ao ser comida, não diminui, mas abre em nós novas camadas de mundo, novas texturas de sentido? A digestão simbólica do divino nos deixa nus diante de uma pergunta inevitável: o que é este Deus que se oferece para além dos cardápios teológicos?

O filósofo Xavier Zubiri nos convida a sentar em outro lugar. Ele recusa, de partida, a imagem gasta de Deus como mais um ente na longa lista dos existentes, ainda que o coroemos como o mais alto, o mais poderoso, o arquiteto supremo no topo da hierarquia. Para ele, todo ente é sempre relativo, sempre aponta para algo que o fez, que o limita, que o sustenta. Uma cadeira aponta para o carpinteiro e para a madeira; uma ideia aponta para a mente que a pensou. Deus, porém, não aponta. Deus é a própria condição do apontar. É o que Zubiri, com uma precisão que beira o silêncio, chama de realidade absolutamente absoluta — o chão último que não precisa de outro chão para ser, a fonte que não se esgota ao jorrar, o “de suyo”, o “em si mesmo”, em sua pureza mais radical e incontornável.

Nós, humanos, imersos no fluxo do real, quando tocamos qualquer coisa — a porosidade de uma pedra, a arquitetura de uma folha, o calor de um rosto — não tocamos apenas esse fragmento isolado. Tocamos algo que nos envia para além de si, para um horizonte de realidade que nunca se fecha, que nunca conseguimos capturar por inteiro. Zubiri nomeia essa ressonância, essa marca formal do divino em cada coisa, de deidade. Não se trata da face mitológica de um deus particular, com seus humores e mandamentos, mas da assinatura silenciosa da ultimidade no tecido do real. Cada coisa, em sua finitude, nos remete a um fundo infinito. E nós, sem que precisemos nomear ou consentir, estamos desde sempre religados a esse fundo.

Zubiri chamou essa experiência fundamental de religação. A palavra é intencionalmente distinta de “religião”. A religião é uma instituição, um sistema de crenças e ritos que pode ou não brotar dessa experiência. A religação, contudo, é anterior, é a nossa condição estrutural de existir. Viver é estar lançado, amparado e interpelado pelo poder da realidade. É sentir-se sustentado por uma força que nos antecede, que nos ultrapassa e que, no fim, nos pede contas. Essa força que nos constitui, esse poder do real que nos obriga a responder — seja com um grito, com uma canção ou com um gesto de cuidado —, é o que, no limite da linguagem, podemos chamar Deus.

É aqui que a teofagia crítica encontra seu terreno mais fértil e sua justificação mais profunda. Se cada átomo do real carrega em si a deidade, então comer o mundo é sempre, e inevitavelmente, comer Deus. O pão, o vinho, a palavra partilhada, o silêncio que cura — todos trazem esse sabor de ultimidade, esse gosto de realidade absoluta. A experiência do sagrado deixa de ser um evento extraordinário, confinado a templos, textos ou momentos de êxtase. Ela se revela na imanência radical de existir. Estar lançado no real já é estar diante do altar. Respirar já é um ato litúrgico.

O problema histórico, a fonte de toda indigestão espiritual, foi a nossa tentativa de engarrafar esse rio. O sabor da deidade, que é fluido, dinâmico e inesgotável, foi coagulado em dogmas inertes. Esquecemos que a realidade absoluta é movimento e excesso, e preferimos a segurança paralisante das definições. Tentamos dogmatizar a digestão. E assim, em vez de metabolizar a presença do divino no mundo, engolimos em seco as fórmulas prontas. Ficamos doentes, empanturrados de um Deus que não nutria. A teofagia crítica é o antídoto: é o retorno à mastigação lenta da experiência, a recusa de qualquer alimento espiritual que não passe pelo crivo do corpo e do tempo.

Zubiri nos aponta uma via de acesso que não passa pelos silogismos da prova racional nem pela adesão cega da fé, mas pela experiência radical do real. Quando sinto a pedra fria em minhas mãos, não sinto apenas sua massa e sua textura; sinto a presença irredutível de algo que me ultrapassa, que me dá um mundo, que me faz habitante da realidade. Esse “mais” que se insinua em toda parte, esse excesso que transborda de cada coisa finita, é o vestígio da realidade absoluta. A teofagia, então, pode ser compreendida como o exercício humano de digerir essa religação, de transformá-la em linguagem, em cuidado, em criação. Não se trata de devorar Deus para aniquilá-lo ou possuí-lo, mas de metabolizar sua presença avassaladora no real para que a vida se torne mais profunda, mais atenta, mais humana.

Isso nos leva a outro conceito central: o poder da realidade. O real nos afeta, nos obriga, nos situa com uma força insubornável. Podemos tentar negá-lo com fantasias, podemos tentar anestesiá-lo com distrações, mas ele sempre retorna, pois somos constituídos nele. É o poder da doença que nos força a repensar a vida, o poder do amor que nos rearranja por dentro, o poder da morte que nos impõe o silêncio. No fundo, nossa liberdade não consiste em fazer o que queremos, mas em responder ao apelo dessa força. E é na qualidade dessa resposta que se decide nossa ética.

Aqui, o cuidado surge como a resposta mais afinada a essa ontologia. Se a realidade absoluta se manifesta no poder do real, então o outro ser humano diante de mim é, talvez, a manifestação mais intensa e interpelante desse poder. Cuidar de alguém não é um ato de benevolência paternalista; é responder ao poder da realidade que o outro é. Não como um objeto a ser consertado ou manipulado, mas como um absoluto que me convoca. Quando cuido, pratico uma forma encarnada de teofagia: deixo que a alteridade do outro me atravesse, me modifique, me alimente. Eu o “como” com meus sentidos, com minha atenção, e o metabolizo em gestos. Assim, Deus não está apenas nas alturas inefáveis ou nos textos antigos, mas, e talvez principalmente, no rosto que me pede atenção, no corpo que me pede amparo.

O Deus de Zubiri, portanto, não cabe nas provas racionais e transborda da fé cega. É o Deus que se insinua no tecido mesmo da realidade, que se deixa degustar em cada fragmento, ainda que nunca se esgote na boca que o mastiga. A imagem da teofagia se mostra, por isso, tão precisa: comer é um ato de integração radical. O que era outro se torna parte de mim, mas sem que eu jamais o possua por completo. O alimento se transforma em meu corpo, mas também em minha memória, em minha energia, em minha palavra. Do mesmo modo, quando digerimos o divino presente no real, não o reduzimos ao nosso tamanho; antes, abrimos em nós um espaço para sermos transformados pelo absoluto.

O risco, sempre presente, é a idolatria: confundir a deidade com os ídolos que fabricamos para representá-la. A realidade absoluta não se deixa aprisionar em conceitos, ritos ou instituições. Cada vez que tentamos fazê-lo, caímos na armadilha de confundir o dedo com a lua, o mapa com o território, o reflexo na água com a fonte. A teofagia crítica precisa ser permanentemente vigilante. Digerir Deus não é fabricar caricaturas convenientes, mas metabolizar a presença viva que nos interpela em cada instante, em cada rosto, em cada injustiça.

Ao final, a visão de Zubiri nos convida a uma espiritualidade da imanência, uma santidade do chão. Não uma fuga para fora do mundo, mas uma escuta radical da sua pulsação. O Deus absolutamente absoluto não é acessado em evasões místicas, mas no encontro honesto com a tessitura concreta da existência. E a teofagia crítica, longe de ser blasfêmia, revela-se como o modo mais autenticamente humano de acolher esse absoluto: mastigando-o, metabolizando-o e transformando-o em carne, em gesto, em palavra. Em cuidado. No fim, como em toda boa digestão, resta um silêncio. Um silêncio que não é vazio, mas plenitude à espera. Silêncio que nos recorda que o real é sempre mais do que podemos dizer. E nesse silêncio, talvez, Deus se deixe saborear outra vez.

3 A NORMA DA VIDA

Se o divino é, como nos sussurrou Zubiri, a própria realidade em sua força absoluta, então a vida é a mais insistente e inquieta manifestação desse poder. O real nos sustenta, nos lança, nos pede contas. E a vida, cada vida, desde a célula mais anônima até a consciência mais complexa, não cessa de responder. A resposta da vida, porém, não é uma única nota afinada, um eco obediente. A resposta da vida é uma polifonia incessante de criação. É aqui que o pensamento se move do vasto oceano da ontologia para o solo pulsante da biologia, guiado pela mão do médico e filósofo Georges Canguilhem. Ele nos ensina a escutar o que a própria vida legisla.

Fomos educados sob a tirania do “normal”. A medicina, a psicologia, a sociedade, todas se armaram com réguas, gráficos e médias estatísticas para definir a saúde e a doença, o certo e o errado, o funcional e o desviante. O normal tornou-se um leito de Procusto: o que se ajusta a ele é validado; o que excede ou falta é mutilado, medicado, silenciado. Essa normalidade é uma ficção perigosa. É uma fotografia estática de uma média que não corresponde a nenhum corpo real. É a voz de fora, o padrão imposto, o decreto que ignora a soberania de cada organismo. Saúde, nesse paradigma, seria mera ausência de doença, uma conformidade silenciosa e passiva aos padrões estabelecidos. Seria não dar trabalho.

Canguilhem nos propõe uma revolução copernicana: deslocar o centro da saúde da “normalidade” para a “normatividade”. A vida não é um fato, é uma atividade. E sua atividade primordial é instituir suas próprias normas. Ser saudável não é caber numa média, mas possuir a capacidade de criar novas regras para o jogo da existência, especialmente quando as antigas se quebram. Saúde é a margem de segurança, a exuberância que permite ao vivente não apenas suportar as infidelidades do meio, mas respondê-las com invenção. Não é um estado, é um poder. O poder de cair e se levantar de um jeito novo. A vida, para Canguilhem, não se submete a leis externas; ela é, em si, legisladora.

É nesse ponto que a figura do doente, do enfermo, se agiganta e deixa de ser um mero desvio a ser corrigido. O doente, longe de ser a prova da ausência de norma, é a testemunha mais radical do poder criador da vida. No corpo que se altera, na respiração que se encurta, na fadiga que impõe outro tempo, há um gesto dramático de refundação. A vida, mesmo ferida, busca obstinadamente outras maneiras de seguir. Inventa equilíbrios precários, estabelece novos ritmos, cria linguagens inéditas de sobrevivência. Canguilhem diria que a doença não é uma anomia, uma ausência de lei, mas um excesso de normatividade. O corpo doente está em febril atividade legislativa, tentando desesperadamente escrever uma nova constituição para um território em crise. O câncer, a febre, a insuficiência cardíaca não calam a vida: obrigam-na a improvisar, a encontrar melodias que antes não conhecia, a reordenar o real para que ele continue minimamente habitável.

Esta visão nos coloca diante de uma ética do cuidado radicalmente distinta. O objetivo não pode mais ser o de meramente “normalizar” o paciente, forçando-o a regressar a um estado anterior que talvez já não seja mais possível ou desejável. O cuidado autêntico é escutar a norma que o corpo doente está a engendrar. O clínico atento deixa de ser um mecânico que repara uma máquina avariada segundo um manual de instruções e se torna um tradutor sensível, um intérprete daquela normatividade biográfica singular. Cuidar é reconhecer que o enfermo funda valores, abre horizontes, e oferece ao mundo uma lição de resistência criadora. É o direito inalienável de cada ser vivo de traçar, mesmo e sobretudo no sofrimento, suas próprias linhas de possibilidade.

Aqui, a teofagia crítica, nossa metáfora central, aprofunda seu sentido e desce da esfera do divino para a carne do vivente. A doença obriga a um ato de digestão violento e inadiável. O enfermo é forçado a mastigar a própria vida outra vez: mastigar suas certezas, sua autoimagem, seus planos para o futuro. É uma teofagia do eu. É preciso metabolizar a ruptura, transformar a perda em um novo modo de ser. O corpo que adoece se torna o próprio altar e o prato deste banquete sacrificial. E o que se come é a própria biografia, para que dela nasça uma nova narrativa, com outras regras, outros sabores. A vida se come a si mesma para não morrer.

Este processo digestivo é a própria criação de uma nova norma. O que era veneno — a doença — pode ser metabolizado em um novo saber, em uma nova sensibilidade. O que era limite se torna um novo contorno para a existência. A saúde, então, revela-se não como a volta ao padrão perdido, mas como a coragem de metabolizar a dor e a desordem em outra forma de estar no mundo. É a plasticidade, a resiliência criadora.

Se juntarmos as pontas do nosso fio, a imagem se completa. O Deus de Zubiri era a realidade absoluta que sustenta toda a existência. Em Canguilhem, a vida é a norma que se inventa incessantemente nesse sustento. O laço entre os dois pensadores é a criação. O sustento do real não é estático; é um convite permanente à invenção. A existência é uma religação criadora, uma digestão contínua do excesso que nos habita e nos constitui. O real nos pede uma resposta, e a vida, mesmo quando ferida, responde inventando. Teofagia, deidade e normatividade se entrelaçam em uma única dança: comer o divino, digerir o real, criar a vida.

O cuidado, portanto, é a prática que honra essa dança. É o gesto de reconhecer a soberania normativa de cada vivente. É ajudar o outro não a voltar a ser “normal”, mas a ser o autor mais potente de sua nova norma. É uma clínica que não se envergonha de ser também uma arte da tradução e um ofício de jardinagem, ajudando a florescer o que insiste em nascer mesmo no solo mais pedregoso. A vida, ao criar sua lei, conta uma história. Mas como se conta essa história? Como essa norma se faz palavra? É essa pergunta que nos abre a porta do próximo capítulo.

4 A DOENÇA COMO NARRATIVA

A vida, como nos ensinou Canguilhem, escreve suas próprias leis na carne. Diante da injúria, do acidente, da invasão, o corpo não se rende; ele legisla, improvisa, funda uma nova normatividade para que a existência continue possível. Mas toda lei, para ser mais do que uma força bruta e silenciosa, precisa ser promulgada. Precisa de uma voz. A norma que o corpo engendra no escuro dos tecidos e na urgência das células precisa encontrar o caminho da palavra para se tornar mundo, para ser reconhecida, partilhada e cuidada. O legislador biográfico, para completar sua obra, precisa se tornar um contador de histórias. É aqui, na fronteira entre o corpo que sente e a voz que narra, que encontramos o pensamento de Arthur Frank e a prática de Rita Charon.

A medicina moderna, em sua busca por objetividade, aprendeu a ver o corpo como um texto a ser decifrado, mas esqueceu que ele é, antes de tudo, uma história a ser contada. O olhar clínico se especializou em ler sinais, em traduzir sintomas em diagnósticos, em converter a desordem da vida em cifras e códigos. O corpo tornou-se um mapa mudo, e o doente, o território a ser explorado. Nesse processo, a linguagem da ciência — precisa, universal, fria — ergueu-se como a única autorizada a falar da doença, enquanto a linguagem do enfermo — hesitante, particular, saturada de medo e de memória — foi rebaixada à condição de ruído, de mero relato subjetivo a ser filtrado em busca de dados relevantes. A biologia ganhou o monopólio da verdade, e a biografia foi exilada da clínica.

É contra esse exílio que a medicina narrativa se insurge. Ela nos recorda que nenhum corpo adoece apenas em seus parâmetros bioquímicos. Cada sintoma carrega um enredo, cada diagnóstico desfaz um mundo e convoca outro. A pessoa que adoece não entrega ao médico apenas um conjunto de queixas; entrega, na voz trêmula ou na fúria contida, os fragmentos de uma vida que foi posta em questão. Arthur Frank chamou essas histórias de illness narratives, as narrativas do adoecimento, e insistiu que elas não são um acessório humanitário da medicina, mas o seu coração pulsante. Rita Charon, ao dar a esse pensamento uma forma prática, reforçou a mesma convicção: sem a competência para receber, interpretar e ser movido pelas histórias dos pacientes, o cuidado se torna uma técnica amputada, um serviço eficiente, mas desalmado.

É neste ponto que a teofagia crítica encontra sua mais concreta e cotidiana aplicação. Se teofagia é mastigar o divino, digerir o real, metabolizar o excesso, então contar a própria doença é o ato teofágico por excelência. O sofrimento, em seu estado bruto, é um excesso que nos invade, um real que nos sufoca. É um nó na garganta, um peso no peito, um caos sem nome. Narrar é o esforço de levar esse caos à boca. É o trabalho lento e doloroso de mastigar o real. Cada tentativa de encontrar a palavra certa, de ordenar os acontecimentos, de dar um contorno ao medo, é um movimento da mandíbula da consciência triturando o bocado indigesto da dor. A palavra se torna a mesa onde o real é servido, e a escuta atenta do outro se faz o vinho que ajuda a engolir. O prontuário médico, se reduzido a códigos e abreviações, mata a história e serve pedra ao invés de pão. Mas, se aberto à narrativa, torna-se um espaço sagrado de tradução, onde a vida pode ser digerida em comunidade.

A doença, portanto, não é apenas uma ruptura fisiológica; é, antes de tudo, uma crise de sentido. É o momento em que a narrativa que contávamos sobre nós mesmos — sobre nosso futuro, sobre nosso corpo, sobre nosso lugar no mundo — se estilhaça. A vida se torna um texto sem pontuação. Nesse vazio, a narração é tanto diagnóstico quanto terapêutica. Ela dá forma ao caos, oferece um fio de continuidade onde só havia fragmentos. Contar a história é começar a reescrever o mundo.

Arthur Frank, em sua escuta atenta, percebeu que não contamos nossas doenças de uma só maneira. Nossas histórias tendem a seguir certos cursos, como rios que cavam seus leitos na paisagem da dor. Há a narrativa de restituição, a história preferida pela cultura moderna: "ontem eu era saudável, hoje estou doente, mas amanhã, com a ajuda da medicina, voltarei a ser saudável". É uma história linear, otimista, que vê a doença como um desvio temporário. Ela é poderosa, mas pode ser cruel e inadequada quando a cura não é uma opção, deixando o doente crônico ou terminal sem um enredo para habitar.

Em oposição a ela, há a narrativa do caos. É a anti-história, o relato de quem foi tragado pelo redemoinho. "E então o médico disse isso, e aí o exame mostrou aquilo, e a dor voltou, e eu não dormi, e então...". A voz é a de um náufrago, sem chão, sem horizonte. O tempo se desfaz num presente perpétuo e angustiante. Esta é a história da indigestão radical, do real que não pode ser simbolizado. É a narrativa mais difícil de contar e, por isso mesmo, a que mais desesperadamente precisa de uma testemunha, de alguém que aguente escutar o caos sem tentar arrumá-lo antes do tempo.

Finalmente, há a narrativa da busca. O narrador aceita a doença não como um parêntese, mas como uma parte irrevogável de sua vida. A partir daí, a jornada se transforma. A perda se torna uma lente através da qual o mundo é visto de outra forma. O sofrimento é metabolizado em testemunho, e a experiência, por mais dolorosa que seja, é transformada em um dom a ser partilhado. O enfermo se torna o “contador de histórias ferido”, aquele que encontra sua voz não apesar da ferida, mas a partir dela. Esta é a narrativa da teofagia bem-sucedida, onde o veneno foi digerido e transformado em remédio para a tribo.

O cuidado narrativo, como extensão da teofagia crítica, é o exercício de ajudar a transformar o caos em busca. É reconhecer que o corpo é um texto vivo, onde se escreve a cada dia a luta por habitar a realidade de outra maneira. A narrativa não é um luxo literário para poucos; é uma prática de sobrevivência para muitos. É nela que o doente encontra abrigo para o indizível, e é nela que o clínico encontra o mapa para um cuidado verdadeiramente ético. Ignorar essa dimensão é condenar a medicina a falar sozinha, enquanto o paciente permanece exilado em sua própria dor.

No limite, narrar a doença é rezar com outra língua. É um ato de fé na palavra, na possibilidade de que o sentido possa ser tecido mesmo com os fios do absurdo. É transformar o sagrado em cotidiano, deixando que a realidade absolutamente absoluta — o Deus de Zubiri que se manifesta no poder do real — atravesse as sílabas de um relato de dor e resiliência. A clínica, então, deixa de ser uma oficina de corpos para se tornar uma liturgia da palavra, e o cuidado, uma tradução poética da vida em sua mais radical fragilidade. O que se busca, ao fim e ao cabo, não é uma história bonita, mas uma história em que se possa viver. E a palavra, quando partilhada, tem essa força: a de alargar o mundo para que a vida, mesmo ferida, caiba melhor dentro de nós.

5 A METÁFORA COMO MEDICINA

Se a doença nos força a nos tornarmos contadores de histórias, como vimos com Frank e Charon, logo descobrimos que a linguagem nunca é um terreno neutro. As narrativas que tecemos para dar contorno ao caos não são feitas de palavras puras e transparentes. Elas são construídas sobre uma fundação invisível e poderosa: a metáfora. A metáfora não é um ornamento, um floreio poético reservado aos artistas. É a respiração secreta da linguagem, o andaime cognitivo sobre o qual erguemos nosso entendimento do mundo. Ela é o gesto que nos permite tocar o desconhecido usando a pele do conhecido. E em nenhum outro território essa verdade se revela de forma tão dramática e com consequências tão concretas quanto no adoecimento.

Nenhum relato de doença escapa da metáfora. A experiência do corpo que falha, do futuro que se encurta, da dor que insiste, é tão avassaladora que a linguagem literal se estilhaça. Para falar dela, precisamos tomar imagens de empréstimo. E as imagens que escolhemos, ou que a cultura escolhe por nós, não se limitam a descrever a nossa realidade: elas a criam. A metáfora que usamos para a nossa doença define os papéis, distribui os roteiros, estabelece as regras do jogo e, muitas vezes, antecipa o desfecho. Ela é o solo onde a nossa experiência vai deitar raízes e florescer, ou murchar.

Ninguém expôs os perigos desse solo com mais lucidez e coragem do que Susan Sontag. Em seu ensaio seminal, “A Doença como Metáfora”, ela dissecou a imagem mais onipresente e tóxica da medicina moderna: a metáfora bélica. Mal o diagnóstico é pronunciado, sobretudo no caso do câncer, e todo um léxico militar é mobilizado. O paciente se torna um guerreiro, seu corpo, um campo de batalha. Os médicos são os generais que traçam as estratégias de ataque. Os tratamentos são arsenais de bombas químicas (a quimioterapia) ou raios aniquiladores (a radioterapia). As células cancerosas são um inimigo invasor a ser erradicado. A doença se torna uma guerra total.

Sontag nos advertiu que essas imagens não são inofensivas. Ao enquadrar a doença como uma guerra, impomos ao doente uma carga esmagadora. Ele não pode mais ser apenas alguém que sofre e precisa de cuidado; ele é convocado a lutar, a ser corajoso, a manter o moral elevado. A própria linguagem o recruta para uma batalha que ele não escolheu. E, como em toda guerra, há vencedores e perdedores. Se o tratamento funciona, ele “venceu a batalha”. Se a doença progride ou retorna, a implicação silenciosa e cruel é que ele “perdeu a luta”, que talvez não tenha lutado com afinco suficiente. A metáfora bélica, sob a aparência de empoderamento, contrabandeia a culpa.

Pior ainda, ela promove uma relação de hostilidade com o próprio corpo. O campo de batalha é o nosso próprio tecido, nossos próprios órgãos. A guerra é uma guerra civil. Siddhartha Mukherjee, em sua “biografia do câncer”, aprofundou essa percepção ao descrever a doença não como um invasor estrangeiro, mas como uma versão distorcida e rebelde de nós mesmos, um “imperador” tirânico nascido de nossas próprias células. A metáfora da guerra nos lança, portanto, numa luta fratricida contra uma parte de nós. O corpo deixa de ser casa para se tornar um território ocupado e suspeito.

É aqui que a teofagia crítica se torna uma prática de higiene linguística, uma ética do paladar metafórico. O convite é para pararmos de engolir sem crítica as imagens que a cultura nos serve. Toda metáfora é alimento: algumas intoxicam a alma, outras nutrem a resiliência. A teofagia crítica nos convida a mastigar as metáforas. A colocá-las na boca da consciência e perguntar: Que gosto tem esta imagem? Que mundo ela constrói? Que tipo de pessoa ela me convida a ser? O que ela faz com meu corpo, com meu medo, com minha esperança?

Esse processo de digestão crítica revela que a metáfora da guerra, para muitos, amarga. Ela isola o doente em sua trincheira, exige dele uma performance de heroísmo e o julga pelo resultado. A teofagia crítica, então, nos impulsiona a cuspir essa imagem tóxica e a buscar outras que alimentem. Se o câncer não é uma guerra, o que ele pode ser? Talvez um jardim em desordem, onde ervas daninhas cresceram junto com as flores, e o trabalho não é de aniquilação, mas de cultivo paciente, de cuidado, de encontrar um novo equilíbrio. Talvez uma casa em reforma profunda, com o barulho, a poeira e o desconforto que isso implica, mas com a promessa de que um novo modo de habitar é possível. Talvez uma longa viagem por um país desconhecido, que exige novos mapas, novas linguagens, uma nova forma de caminhar.

Metáforas como “jardim”, “casa” ou “viagem” são relacionais, não antagônicas. Elas não negam a dor ou o perigo, mas mudam o enquadramento. O paciente deixa de ser um soldado e pode se reconhecer como um jardineiro, um arquiteto, um peregrino. Essas imagens abrem espaço para a paciência, a ambiguidade, a tristeza, a criatividade. Elas permitem uma relação de colaboração, e não de combate, com o corpo e com a equipe de saúde. A metáfora deixa de ser uma prisão para se tornar um espaço de possibilidade, uma verdadeira medicina para a alma. Ela não cura o tumor, mas pode curar a narrativa, alinhando sentido e biografia, e preparando o espírito para receber o cuidado do corpo.

Sontag, em sua ânsia purificadora, desejava libertar a doença de todas as metáforas. Mas talvez o desafio, como bem aponta o esboço do nosso livro, seja outro. Uma vida sem metáforas é tão impossível quanto uma vida sem ar. O trabalho não é o de esvaziar a linguagem, mas o de repovoá-la com imagens que gerem vida. Não se trata de ascetismo, mas de cultivo. A tarefa teofágica não é jejuar de metáforas, mas celebrar um banquete com aquelas que nos nutrem. É um discernimento contínuo.

Ao escutar ativamente as metáforas que um paciente usa, o clínico se torna um tradutor de mundos. Ele percebe que, em cada imagem, pulsa uma tentativa de nomear o excesso que escapa, de tocar a sombra daquela realidade absoluta de que falava Zubiri. A metáfora não captura o divino, mas ela mastiga sua presença no caos da experiência.

No fim, a escolha metafórica é um ato profundamente político. Optar por falar de jardins em vez de trincheiras é escolher um modelo de cuidado baseado no cultivo e não no combate. É afirmar um mundo onde a vida não é avaliada pela métrica brutal da vitória ou da derrota, mas pela sua capacidade de florescer apesar das ruínas, de gerar beleza mesmo a partir das cicatrizes. A teofagia crítica, a normatividade da vida e a narrativa do adoecimento convergem neste ponto: em cada metáfora que digerimos conscientemente, estamos reescrevendo o real. O sagrado não é engolido de uma vez por todas, mas metabolizado em imagens que nos sustentam. E a medicina, quando se abre a esse banquete de metáforas, torna-se ela mesma uma linguagem que cuida, uma palavra que, como um pão, se deixa comer para gerar vida.

6 A METATÉCNICA DO CUIDADO

Se a narrativa nos dá uma casa para habitar a doença e a metáfora nos oferece os tijolos e as janelas para construí-la, a questão agora se volta para as ferramentas. Como agimos? Com que gestos tocamos o corpo que sofre? A palavra, por mais poderosa que seja, precisa encarnar-se em ações. É no território do fazer, da intervenção, da técnica que o cuidado se materializa ou se trai. O pensamento se inclina agora para o ponto de contato entre a mão e a pele, entre o instrumento e o tecido, para explorar uma dimensão que vai além da pura eficiência: a metatécnica do cuidado.

Vivemos sob o império da técnica. O sucesso da medicina moderna é, em grande parte, o sucesso de seus aparatos, de seus protocolos, de sua capacidade de intervir no corpo com uma precisão antes inimaginável. Contudo, como nos alertou o pensador brasileiro Álvaro Vieira Pinto, a técnica, quando divorciada de sua origem e de seu propósito humano, corre o risco de se autonomizar e se tornar um fetiche. A técnica deixa de ser um meio para se converter em um fim em si mesma. O procedimento passa a ter mais importância do que a pessoa a quem ele se destina. O corpo do doente se torna um objeto passivo sobre o qual se aplica um saber-fazer, e o profissional de saúde, um executor competente de tarefas. É a lógica da linha de montagem aplicada à fragilidade da vida, uma forma de alienação que esvazia o ato de seu sentido mais profundo.

Para resgatar o gesto de sua prisão instrumental, precisamos de outra imagem do corpo, uma que resista à metáfora da máquina. O biólogo Donald Ingber nos oferece uma visão poderosa com o conceito de tensegridade. O corpo vivo, segundo ele, não é estruturado como um prédio, com blocos rígidos empilhados, mas como uma teia complexa, uma arquitetura de tensões e equilíbrios dinâmicos. Como uma cúpula geodésica, ele se sustenta por uma rede de tração contínua e compressão descontínua. Sua força não vem da rigidez, mas da flexibilidade e da distribuição de forças. Nessa estrutura, tudo está interligado. Um toque em um ponto reverbera por todo o sistema. A tensegridade nos mostra um corpo que é relacional em sua essência, onde o físico, o emocional, o bioquímico e o narrativo formam uma única e inseparável teia.

A metatécnica do cuidado nasce precisamente no cruzamento dessas duas ideias: a crítica à técnica fetichizada e a compreensão do corpo como uma teia de tensegridade. Se o corpo é um sistema vivo e interconectado, então todo ato técnico sobre ele é muito mais do que uma operação mecânica; é uma intervenção simbólica que reverbera por toda a biografia da pessoa. A metatécnica é a consciência e a arte de manejar as ferramentas do cuidado sabendo que elas tocam não apenas um órgão, mas a totalidade de um ser. É o que acontece no espaço entre a precisão do protocolo e a presença do encontro. É o como que atravessa e redime o o quê. A agulha que perfura a pele para encontrar uma veia não é apenas um instrumento; é um ato de invasão que pode ser perpetrado com a frieza da eficiência ou com o respeito de quem pede licença para entrar. O bisturi que corta a carne não está apenas removendo um tecido; está reescrevendo uma história na pele.

Aqui, a teofagia crítica retorna, agora transformada para pensar o gesto. Se a técnica é o pão — o alimento necessário da ciência, o fármaco, o procedimento que salva —, a metatécnica é o modo de mastigá-lo. A abordagem puramente técnica, focada no protocolo, é a de engolir o pão inteiro, sem mastigar. É rápido, cumpre a função de nutrir em termos brutos, mas gera uma indigestão de sentido, um mal-estar que afeta tanto o paciente, que se sente um objeto, quanto o profissional, que se sente um autômato. É um ato que alimenta o sistema, mas deixa os indivíduos famintos de reconhecimento.

A metatécnica, ao contrário, é o convite para mastigar a técnica. É o ato de decompô-la em seus elementos humanos. Mastigar é dar tempo ao tempo. É a pausa antes de dar uma notícia difícil. É o cuidado na escolha de uma palavra em vez de outra. É o toque que conforta, a mão que segura uma outra mão durante um procedimento doloroso. É o silêncio que se senta ao lado do leito e autoriza a lágrima. Nenhuma dessas dimensões cabe em um protocolo ou pode ser medida por indicadores de performance, mas são elas que definem a essência do cuidado. São elas que transformam o pão duro da ciência em um alimento que pode ser verdadeiramente assimilado por um ser humano fragilizado.

Essa perspectiva tem consequências políticas imensas. Um sistema de saúde, como o sonho de um SUS narrativo, que levasse a metatécnica a sério, não poderia ser gerido apenas por planilhas de custos e metas de produtividade. Precisaria inscrever em sua estrutura as condições para a presença. Precisaria valorizar e remunerar o tempo da escuta tanto quanto o tempo do procedimento. Precisaria criar espaços que promovam a dignidade e não apenas a assepsia. Um sistema assim entenderia que a presença, a narrativa e o gesto cuidadoso não são luxos de um cuidado humanizado, mas componentes essenciais da saúde pública, tão vitais quanto o acesso a exames e medicamentos.

Ninguém duvida da necessidade da técnica. Sem ela, o cuidado é impotente. Mas sem a metatécnica, a técnica se torna desumana, por vezes até cruel. O cuidado verdadeiro é uma ecologia de forças, uma dança que harmoniza o cálculo e a compaixão, a evidência científica e a poesia do encontro. Como diria Ingber, da mesma forma que a célula só mantém sua integridade quando suas tensões internas se equilibram, a clínica só se sustenta como prática de cura quando a técnica e a presença se entrelaçam numa relação de mútua necessidade.

Por isso, a metatécnica do cuidado é mais que um conceito; é um horizonte ético. É o chamado para construirmos uma prática que se recusa a reduzir o paciente a um caso e o clínico a um executor. No encontro metatécnico, ambos se tornam tradutores de mundos, parceiros na difícil tarefa de tecer sentido em meio à dor. E nessa tradução, nessa atenção ao gesto, o divino de que falava Zubiri se deixa digerir mais uma vez — não nos altares distantes, mas nos corredores dos hospitais, nos gestos anônimos dos postos de saúde, nos lares silenciosos onde a vida insiste em ser cuidada. No fim, metatécnica significa isto: recuperar o humano na técnica, o simbólico no gesto, a poesia no procedimento. É a sabedoria de saber que cada agulha também escreve, cada remédio também canta, cada exame também conta uma história. E que cuidar é sempre mais do que operar: é mastigar junto o pão misterioso da realidade.

7 A ONCOPOÉTICA COMO PRÁTICA

Se a metatécnica do cuidado é a arte de transformar o gesto clínico em um ato de presença, então a oncopoética é essa arte em sua manifestação mais delicada e radical. É o ponto de convergência para onde fluem todas as correntes que exploramos até aqui. Todo o percurso anterior — a digestão simbólica da teofagia, a reverência à realidade absoluta de Zubiri, a escuta da norma criadora de Canguilhem, o acolhimento da narrativa de Frank e Charon, o discernimento das metáforas de Sontag, e a consciência do gesto de Vieira Pinto — encontra um território concreto, um campo de aplicação, uma prática viva na oncopoética.

É preciso dizer, de início, o que ela não é. A oncopoética não é um novo gênero literário para ser estudado por acadêmicos. Não é uma disciplina anexa, um adereço humanitário para decorar os corredores frios do hospital. E não é, de forma alguma, uma terapia alternativa que promete curas milagrosas através do pensamento positivo. A oncopoética é, antes de tudo, uma prática. Uma forma de estar junto, uma metodologia do encontro, um conjunto de ferramentas simbólicas para habitar o território devastador da oncologia. É o exercício encarnado de metabolizar o indizível do câncer em palavra, em imagem, em silêncio partilhado. É a mesa posta no meio do hospital, onde o pão é um poema, o vinho é a escuta, e o corpo — ainda que atravessado pela dor e pela incerteza — se torna o altar de uma liturgia da resistência humana.

O câncer, talvez mais do que qualquer outra doença, nos confronta com o absolutamente indigesto: a finitude, a fragilidade radical do corpo, a tirania do acaso, a dissolução da identidade. Diante desse real nu e avassalador, a linguagem cotidiana, com sua lógica e suas certezas, falha. As palavras se tornam ocas. É aqui que a poesia se revela não como um luxo, mas como uma técnica de sobrevivência. A linguagem poética, com sua capacidade de conviver com a ambiguidade, de dizer através de imagens, de dar peso e ritmo ao silêncio, é o único estômago capaz de acolher e começar a digerir o que é, a princípio, intragável. Cada verso pode abrir uma fresta no muro do isolamento. Cada metáfora pode devolver ao enfermo a possibilidade de se habitar em outra língua, para além do jargão clínico que o define. Se a doença é uma ruptura de sentido, a oncopoética oferece um trabalho de tradução: ela não promete apagar o grito, mas pode ajudá-lo a encontrar uma melodia; não elimina o silêncio, mas o transforma em espaço compartilhado; não nega a lágrima, mas a recolhe numa metáfora que a torna habitável.

Esta prática teofágica se desdobra em gestos concretos. As oficinas de metáforas, por exemplo, são espaços onde pacientes e cuidadores são convidados a mastigar a linguagem da guerra e a criar, em conjunto, imagens que nutram. São laboratórios de ressignificação, onde a pessoa deixa de ser uma vítima passiva da linguagem para se tornar autora das imagens que irão moldar sua experiência. A biblioterapia, por sua vez, é o ato de prescrever um poema como quem prescreve um cuidado, oferecendo um texto que possa servir como espelho, como companhia, como prova de que outros já atravessaram desertos semelhantes e sobreviveram para contar. O próprio prontuário narrativo se torna um ato oncopoético quando o profissional se permite registrar não apenas os dados, mas a essência da história, a metáfora-chave do paciente, a textura do encontro. São todas formas de praticar a teofagia no campo da saúde. O paciente não engole apenas comprimidos; ele é convidado a engolir palavras que o sustentam. E ao metabolizar essas palavras, encontra nelas um alimento de dignidade que nenhum fármaco pode oferecer.

A oncopoética é, por isso, uma prática profundamente política. Ela é um ato de resistência contra o paradigma biomédico hegemônico que, em sua busca por eficiência, tende a reduzir o sujeito a um conjunto de dados, a um corpo a ser gerenciado. Ela desafia essa lógica ao afirmar que o trabalho de construção de sentido não é um suplemento, mas uma dimensão central e inegociável do cuidado. Ela propõe uma clínica que reconhece a poesia como um insumo de saúde, tão importante quanto a quimioterapia. O sonho de um "SUS simbólico" é a utopia política da oncopoética: um sistema de saúde público que garanta a todos não apenas o direito ao tratamento, mas o direito a ter sua história ouvida, sua dor nomeada, sua vida contada em verso.

Nesse horizonte, a figura do poeta, do artista, ou de qualquer pessoa que maneje a linguagem com sensibilidade poética, se transforma. Ele não é o gênio isolado em sua torre de marfim, mas um "tradutor de mundos", um artesão do sentido que se senta ao lado do leito. Sua função não é a de explicar o sofrimento ou oferecer respostas fáceis. É a de hospedar. Hospedar o silêncio, acolher a pergunta que não tem resposta, oferecer uma imagem que sirva de abrigo. A sua arte se assemelha ao kintsugi, a antiga técnica japonesa de reparar cerâmica quebrada com uma laca misturada com pó de ouro. O kintsugi não esconde as fraturas; ele as realça, transformando as linhas de quebra em parte da beleza e da história do objeto. A oncopoética faz o mesmo: ela não nega a ferida do câncer, mas a percorre com o ouro da linguagem, mostrando que a cicatriz também pode ser um poema, que a beleza também pode nascer da falha.

Assim, a oncopoética se revela não apenas como uma prática de cuidado, mas também como uma epistemologia, uma forma de conhecimento. Ela nos permite conhecer o câncer não apenas através de lâminas de microscópio e laudos de imagem, mas na carne viva das narrativas e na vibração das metáforas. É o ponto onde ciência e arte, precisão e presença, biologia e biografia finalmente se reconciliam, não para se fundirem, mas para dançarem juntas.

No fim, talvez o gesto mais radical da oncopoética seja devolver ao enfermo o direito de ser autor de sua própria história, mesmo quando o final não pode ser escolhido. Não mais um personagem passivo no drama escrito pela doença, mas o escritor que, com as palavras que lhe restam, tece um final que tenha dignidade e sentido. E nesse ato de criação, a realidade absolutamente absoluta de Zubiri, o Deus que é o fundo de todas as coisas, volta a ser saboreado. Não como um dogma fixo, mas como o pão vivo que se renova no poema que nasce entre a dor e a esperança. Oncopoética é isto: um pão que não se esgota, uma mesa que não exclui, uma palavra que se deixa mastigar. É o cuidado feito verso, a clínica feita poesia, a vida feita escrita.

8 EPÍLOGO: UM PÃO QUE NÃO SE ESGOTA

Chegamos ao fim da travessia como quem retorna ao ponto de partida, mas com o paladar transformado. Estamos novamente diante da mesa, diante do gesto de comer. Diante do pão. Não um pão qualquer, fabricado em série e consumido com pressa. Mas o pão que deu título a este livro em seu subtítulo, aquele que se revela inesgotável, que pode ser partido e repartido mil vezes sem jamais se consumir. Foi a busca por esse pão que nos guiou, e foi o seu sabor, transmutado a cada capítulo, que nos alimentou.

No início, provamos o pão amargo da teofagia crítica, o pão dos dogmas que precisou ser mastigado até a suspeita, e cuspido, para que a boca se purificasse e pudesse novamente sentir fome de um alimento vivo. Em seguida, com Zubiri, descobrimos que o pão não era um símbolo de algo distante, mas a própria substância do real; o pão da realidade absolutamente absoluta, o chão que sustenta cada migalha da existência. Com Canguilhem, vimos esse pão sendo assado no fogo da adversidade, o pão que a própria vida fermenta e cozinha quando, ferida, inventa uma nova norma para sobreviver.

Com Arthur Frank e Rita Charon, esse pão se tornou palavra, o pão da narrativa partilhada que alimenta a identidade e impede que o sofrimento nos devore por inteiro. Depois, com Sontag e Mukherjee, aprendemos a discernir os temperos desse pão, a sentir o gosto das metáforas, separando as que nutrem daquelas que envenenam. Com Vieira Pinto e Ingber, nossa atenção se voltou não para o pão em si, mas para o gesto de parti-lo e oferecê-lo: a metatécnica como o pão do encontro, onde a maneira de dar é tão importante quanto o dom. E, por fim, na oncopoética, vimos esse pão se transfigurar em poema, o alimento mais sutil e mais denso, capaz de nutrir o espírito quando todo o resto falha.

Esse pão, que mudou de forma e sabor a cada etapa, revela-se agora em sua essência: ele é o sacramento humano da realidade. É o sentido tornado comestível. Ao mastigá-lo ao longo destas páginas, descobrimos que a existência não cabe nos manuais de protocolo nem nas prateleiras dos dogmas, mas se renova e se aprofunda em cada fragmento que é criticamente digerido. O ato de comer, que iniciou nossa jornada, se confirma como a metáfora radical para o processo de viver. O divino não é algo que se absorve de uma vez por todas numa revelação fulminante, mas algo que se metaboliza lentamente, em pequenas porções diárias de narrativas, de gestos, de metáforas, de poemas.

A teofagia crítica, que soava no início como um gesto de agressão e ruptura, revelou-se, no percurso, como um ato de profunda intimidade. Descobrimos que não se trata de devorar para destruir, nem de consumir para possuir. Trata-se de mastigar para transformar, de digerir para viver. Neste processo, acontece uma misteriosa inversão: não somos nós que assimilamos o divino, reduzindo-o ao nosso tamanho. Ao nos abrirmos para digerir o real em sua totalidade, somos nós que nos dissolvemos nele para sermos reescritos. O divino não se torna parte de nós; nós é que nos tornamos uma expressão consciente dele. Somos mastigados pela vida para que possamos nos tornar, por nossa vez, alimento.

Talvez o cuidado seja, em última instância, exatamente isso: a liturgia de partilhar o pão que não se esgota. É o ato de partilhar o que temos e o que somos: partilhar a ciência e a poesia, a precisão da técnica e a presença do afeto, a palavra e, talvez o mais importante, o silêncio. Partilhar o silêncio como a última palavra, como o gesto de reverência final diante do mistério. O silêncio não é o vazio, mas o espaço onde a digestão se completa, onde o alimento se torna finalmente corpo e força. É o reconhecimento humilde de que a realidade absoluta será sempre mais do que podemos nomear.

Por isso, o ensaio que aqui termina não se fecha. Ele se abre como uma toalha sobre a mesa, um convite à continuidade. Cada vida adoecida é um capítulo inacabado esperando para ser escrito com dignidade. Cada metáfora que escolhemos é um pão que repartimos. Cada narrativa que escutamos até o fim é uma mesa que pomos para o outro. Deus permanece como o fundo inominável que sustenta tudo, nos convidando a prová-lo não em conceitos, mas em atos de comunhão.

O pão que não se esgota é, portanto, um convite e uma tarefa. É o chamado para nos sentarmos juntos à mesa da existência, sobretudo onde ela é mais frágil e mais ameaçada. Mastigar juntos, para que o fardo da dor se torne mais leve. Habitar juntos, para que o exílio da doença seja menos solitário. Cuidar juntos, para que a nossa humanidade se revele em seu ofício mais sagrado. Porque só assim, digerindo o divino em comunidade, no quebrar do pão do dia a dia, conseguimos transformar a dor em vida, e a vida, em um interminável e luminoso gesto de eternidade.

Referências

CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

CHARON, Rita. Narrative medicine: honoring the stories of illness. Oxford: Oxford University Press, 2006.

FRANK, Arthur W. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press, 2013.

INGBER, Donald E. The architecture of life. Scientific American, New York, v. 278, n. 1, p. 48–57, jan. 1998.

MUKHERJEE, Siddhartha. O imperador de todos os males: uma biografia do câncer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

SONTAG, Susan. Doença como metáfora; AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

VIEIRA PINTO, Álvaro. O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

ZUBIRI, Xavier. El hombre y Dios. 2. ed. Madrid: Alianza Editorial, 1984.

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Giovani Miguez

SOBRE O AUTOR

Giovani Miguez

Poeta, escritor (mais de 20 livros publicados) e pesquisador. Doutor e mestre em Ciência da Informação (IBICT/UFRJ). Especialista em Psicanálise e Psicologia. Graduado em Gestão Pública com Extensão em Jornalismo de Políticas Públicas. Analista de Ciência e Tecnologia na Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer (INCA). Atualmente, além das pesquisas em Filosofia da Ciência da Informação (Antropologia Filosófica e Documentalidade), pesquisa também sobre Cuidado Narrativo, Cuidado Oncológico, Trabalho em Saúde e Informação em Saúde.

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