“Só me interessa o que não é meu.” - Oswald de Andrade
Antropofagia foi nosso verbo inaugural. Comer para traduzir. Digerir para existir sem cabresto. No estômago simbólico do modernismo, a cópia perdia a voz e a invenção ganhava dentes. Hoje, desejo deslocar o gesto para outra mesa. Em vez de culturas hegemônicas, o divino herdado. Não para profanar. Para metabolizar. Uma Teofagia crítica enquanto ética do paladar espiritual. Menos adesão cega e literalidade. Mais digestão simbólica. O sagrado, quando passa pelo corpo da linguagem, aprende a cuidar.
Devoro aqui dogmas que se petrificaram em letras de bronze. Imagens sagradas que esqueceram o movimento. Promessas que viraram senha de exclusão. Mastigo cada enunciado como quem testa um fruto. Se amargar o humano, eu cuspo. Se nutrir o comum, eu retenho. A fé deixa de ser armadura e reaprende a ser pele. Porosa. Relacional. A letra, sem corpo, é fome. O símbolo, sem circulação, azeda.
Aprendi com a antropofagia que copiar é perecer. A teofagia crítica acrescenta que idolatrar a letra é indigesto. Não é Deus que se come. É o acúmulo de interpretações que deixaram de fermentar. Fermento é tempo. Fermento é partilha. Fermento é tensão entre silêncio e palavra. Quando digerimos o divino, ele retorna à mesa do cotidiano com outras maneiras de dizer por favor e obrigado. Sai do pedestal para sentar conosco. Vira gesto. Vira cuidado.
Proponho um método simples. Colher. Mastigar. Metabolizar. Colher é recolher narrativas do sagrado sem medo do pó e das fissuras. Mastigar é fricção hermenêutica. O texto encontra a vida e ambos se interrogam. Não vale tudo. Há critérios. O que humaniza, permanece. O que humilha, não serve. O que abre, respira. O que fecha, asfixia. Metabolizar é devolver ao mundo o que se tornou carne ética. Hospitalidade, justiça, alegria que se reparte sem espetáculo.
Não confundo esse processo com relativismo. Relativismo é indiferença disfarçada. Teofagia crítica é cuidado radical. Coloco o símbolo em movimento para que ele não se confunda com sua moldura. Ícones servem quando lembram a luz. Não quando a substituem. Toda imagem é ponte. Quem se fixa no arco esquece o rio. E o sagrado, tal como um rio, só vive se corre. Traz sedimentos, curvas, remansos. Deixa umidade na pedra. Isso basta.
Há um perigo antigo que nos ronda. A pressa da certeza. A tentação de engolir sem mastigar. Fizeram-nos isso por séculos. Versículos como cápsulas. Ritos como comprimidos. Dogmas como latas de conserva. Toda conserva tem prazo. O espírito precisa de ar. A palavra precisa de corpo para não virar ruído. A teofagia crítica oferece tempo de boca e de coração. O divino, assim, não se torna um comando que humilha. Torna-se uma presença que convida.
A finitude é nossa pedagoga. Nela, a esperança aprende a andar devagar. Milagres não levantam voz. São discretos. Alguém escuta alguém. Alguém reparte algo. Alguém volta a dormir em paz. Essa liturgia sem incenso é mais antiga do que as paredes dos templos. Mastigar palavras até virarem gesto. Deixar que a oração se faça ofício de justiça. Que o cântico se torne fôlego. Que o texto sagrado se traduza em língua comum no mercado, na escola, no hospital.
O que chamo de digestão simbólica não é licença para dissolver tudo em metáfora frouxa. É o contrário. É exigir que cada imagem responda pelo que faz no mundo. Metáforas são ferramentas. Se cortam, que cortem o que oprime. Se costuram, que costurem o rasgo social. A prova do nove é sempre a vida vulnerável. Se a doutrina não a reconhece, não é casa. Se a liturgia não a alimenta, não é pão.
No Brasil, a antropofagia nos ensinou a responder ao estrangeiro com invenção. A teofagia crítica que defendo pede que respondamos ao sagrado com responsabilidade. Não súditos do inefável, mas coautores do sentido. Tradutores pacientes. Quem traduz cuida. E quem cuida, cria mundo. A tradução teológica que proponho é lenta, comunitária, sem glamour. Feita de escutas, de glossas domésticas, de leituras em roda. Feita de perguntas: O que este símbolo sustenta? O que este rito silencia? O que esta doutrina promete e a quem?
No fim, resta a mesa. Símbolos em estado de pão. Nomes de Deus que respiram. Versos que não mandam ajoelhar, apenas convidam a permanecer um pouco mais. A fé deixa de performar pureza e reaprende a habitar contradições. Não para desculpá-las, mas para transformá-las. Conversão aqui é uma palavra sem trombeta. É mendigar sentido e encontrá-lo no outro. É voltar sempre que possível para perguntar se ainda nutre.
Se devo dar nome ao gesto, fico com ele: "Teofagia crítica". Não devoro Deus. Devolvo ao divino a chance de alimentar sem ferir. O que não nutre, não é sagrado. O que não cuida, não merece culto. O resto é barulho. Enquanto comemos devagar, o mundo desaperta um pouco. E, nesse afrouxamento, a vida cabe melhor em nós.
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